14/10/17

O cartão e as mutucas da Fenagreste por Jénerson Alves


“Em relação aos professores, meu desejo é que eles aproveitem bem o bônus de 300 reais para comprar os exemplares que quiserem”. Essas palavras foram proferidas pela prefeita de Caruaru, Raquel Lyra, conforme publicado no site da Prefeitura. O que a prefeita provavelmente não sabia é que o bônus entregue aos docentes não podia ser empregado livremente na II Feira Nacional de Livros do Agreste (Fenagreste). Ao contrário do que foi publicado oficialmente, todo o valor liberado pelo poder público municipal deveria ser direcionado às grandes editoras presentes na Feira. As produções locais foram ‘esquecidas’ neste pacote.
Para se ter uma ideia, nem mesmo a obra do homenageado da Fenagreste, José Condé, pôde ser adquirida por meio do famoso ‘cartão’ mui enaltecido pela atual gestão. Semelhantemente, no stand da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel, o que mais se viu foram professores intentando adquirir livretos para trabalhar em sala de aula, mas que ficaram frustrados mediante a falta de viabilidade de utilizar o cartão.
Pelos corredores da Feira, ao serem questionados pelos autores locais sobre essa situação, os representantes do poder público agiram como seguidores da cartilha do ex-presidente Lula: com cara de paisagem, dizendo que “não sabiam de nada”. Somente após longas tentativas de esclarecimentos, a equipe responsável pelo evento declarou aos autores que as instituições deveriam ter um convênio com a Andelivros para poder ter acesso ao benefício.
O inciso III do artigo 6º da Lei Orgânica dispõe ser competência do Poder Municipal “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural”. Ora, entendemos que facilitar a popularização dos bens culturais é uma forma eficiente de resguardar essas produções. Porém, na Fenagreste, constatou-se a cultura popular sucumbindo perante a “Indústria Cultural” e o poder econômico sufocando a criatividade identitária do “País de Caruaru”. 
Essa situação nos faz lembrar uma fábula criada pelo escritor Monteiro Lobato. Na narrativa, um fazendeiro cumpre um trajeto montado em um cavalo. Com um chicote, o homem extermina as mutucas que circundam o animal. Em certo ponto, o equino reclama ao dono, dizendo que ele está matando os insetos gordos, que já sugaram seu sangue, deixando os famintos com total liberdade de picarem-no. Assim sendo, o aparente benefício prestado pelo ser humano era, na verdade, inócuo. Da mesma forma, disponibilizar espaço físico para entidades literárias da cidade em um evento daquela magnitude é um aparente benefício. Todavia, restringir as condições de comércio é torná-lo inócuo.
A bem da verdade, vale ressaltar que, após sucessivas reclamações dos escritores locais, os organizadores do evento, bem como alguns representantes do poder público contactados, se mostraram favoráveis em sanar esta dificuldade na edição do próximo ano. Para tanto, far-se-á necessário um contato mais estreito entre a organização da Feira e as instituições literárias municipais. É o que os produtores literários de Caruaru esperamos. Afinal de contas, as picadas das mutucas já nos doem muito nos lombos. 

Jénerson Alves, presidente da Academia Caruaruense de Literatura de Cordel, jornalista, professor e escritor

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