Desde que se iniciou a série de encontros da Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) e Brasil Debate para discutir os efeitos das políticas de ajuste fiscal no país, um dos quadros mais dramáticos revelados foi o da cultura. “Morte lenta”, “respiração por aparelhos” e “inviabilização” foram algumas expressões usadas para definir o setor, suas instituições e políticas depois dos cortes orçamentários de 2015 (a “navalha”), acentuados a partir de 2017 (a “guilhotina”).
Responsável pelo diagnóstico, o ex-secretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC) João Brant afirmou que o impacto das medidas de austeridade é de tal ordem que “há o risco de o MinC se tornar inviável,como instituição”.
Autor de um levantamento sobre a trajetória das políticas e investimentos públicos federais em cultura desde a criação do MinC, em 1985, até a sua extinção e recriação no governo Michel Temer (por pressão de artistas e movimentos sociais que ocuparam sedes de órgãos culturais em ao menos 18 capitais, em 2016), Brant expôs dados preocupantes em 7 de junho último.
Para debater com ele estiveram presentes, na sede da FES em São Paulo, o ex-ministro da Cultura e atual secretário da Cultura de Belo Horizonte Juca Ferreira e o advogado, pesquisador e ex-secretário de Políticas Culturais do MinC Guilherme Varella.
De acordo com Brant, o orçamento discricionário do Ministério, que compreende as despesas sobre as quais os gestores têm poder de decisão – usadas para custeio, manutenção e investimento em políticas públicas – teve perda real de mais de 45% entre o final de 2014 e o final de 2017 (de R$ 1,02 bilhão para R$ 553,4 milhões).
A redução de recursos impacta diretamente as principais políticas culturais. Um exemplo é o programa Cultura Viva, cujo carro-chefe são os Pontos de Cultura, criados para dar suporte à ação de agentes culturais em todo o país, com forte presença nas periferias e regiões mais carentes, e que “foi silenciosamente descontinuado”.
Até 2010, o programa executava mais de R$ 100 milhões por ano. Em 2015, toda a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, responsável por ele, teve pouco mais de R$ 32 milhões para investir e, em 2018, esse valor baixou para R$ 12 milhões, “o que equivale a menos da metade do que o Estado de São Paulo repassa anualmente para a Pinacoteca de São Paulo”, escreve Brant.
Juca Ferreira, ex-ministro nas gestões Lula II e Dilma II e secretário-executivo do MinC na gestão Gilberto Gil (este à frente da pasta por seis anos) lembrou outro efeito dos cortes fiscais: segundo ele, mais de 600 bibliotecas municipais foram fechadas neste período pós-2015. “Chegamos a zerar os municípios sem bibliotecas, dávamos toda a estrutura, a contrapartida dos municípios era apenas contratar dois funcionários”, lamenta.
Os cortes orçamentários, explica Brant, começaram com oscilações a partir de 2011, no primeiro governo Dilma, viraram caso sério em 2015, quando se assistiu “ao maior contingenciamento do orçamento do governo federal das últimas décadas” (mais de R$ 70 bilhões foram contingenciados), e se tornaram uma sentença de morte no governo Temer, que desidratou o MinC após ser obrigado a recuar da decisão de extingui-lo e torná-lo parte do MEC.
Em seguida, em dezembro de 2016, veio a aprovação da Emenda Constitucional 95, a emenda do teto de gastos, que tende a reduzir ainda mais os recursos, ano a ano. “O Ministério conta, em 2018, com apenas R$ 100 milhões para trabalhar com políticas públicas.”
Na prática, prevê o ex-secretário, a permanecer a atual política, o MinC seguirá mantendo apenas a própria estrutura, formada por administração direta, pessoal e sete entidades vinculadas – Iphan, Ibram, Funarte, Fundação Biblioteca Nacional, Fundação Cultural Palmares, Fundação Casa de Rui Barbosa e Ancine – até a total inviabilização. “Qualquer gestor que analise a situação do MinC vai concordar que um ministério assim não faz sentido”.
Ele aponta, porém, uma contradição no orçamento da pasta, que pode dar a falsa ideia de que os recursos não decrescem tanto assim: a existência de orçamentos à parte do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e do PAC Cidades Históricas, duas iniciativas do período prolífico de 2003-2010 da gestão do MinC.
Os investimentos do PAC, programa de obras de restauração de igrejas e outros prédios públicos tombados em 44 cidades, contam com uma área reservada do orçamento, e o FSA, criado em 2006, tem quase a sua totalidade proveniente da arrecadação da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Audiovisual), cuja principal fonte pagadora são as empresas de telecomunicações.
Como se trata de uma despesa financeira, o FSA não disputa orçamento com as demais políticas do MinC e seus recursos são exclusivos para o audiovisual, não podem ser remanejados. “Enquanto, de maneira geral, o MinC e as políticas culturais definham, a parte política do audiovisual voltada a seu desenvolvimento como indústria se fortalece como política de Estado, fruto de um arranjo robusto construído especialmente entre 2006 e 2011”, afirma Brant.
“Do-in antropológico”
Os efeitos perversos das medidas de austeridade, no entanto, não se restringem a um problema de orçamento. Essas medidas são “um dos pilares do neoliberalismo, instrumento de redução do papel do Estado”, na definição do professor do IE-Unicamp Pedro Rossi, um dos anfitriões do debate na FES.
Nessa linha, pode-se dizer que no caso da cultura há risco de sobrevivência da própria ideia de uma política pública para o setor. Brant lembra que antes de 2003, ou até a posse de Gilberto Gil na pasta da Cultura, no primeiro governo Lula, havia se consolidado um modelo de política cultural com financiamento centrado nas leis de incentivo. Ou seja, as atividades culturais praticamente só aconteciam por iniciativa do setor privado, via renúncia fiscal.
A partir de Gil, continua ele, houve uma mudança de paradigma na concepção de política pública de cultura e um grande esforço para fortalecer a ação direta do Ministério. “A perspectiva era de criar uma política de Estado baseada não apenas em fomento a atividades culturais, mas em processos regulatórios e políticas públicas que contribuíssem para o desenvolvimento da cultura em três dimensões: simbólica, econômica e cidadã”. Houve uma ampliação do conceito de cultura a partir das gestões petistas, incorporando-se a sua dimensão sociocultural, explica Brant.
Tanto que Gil, lembra ele, gostava de usar a expressão “do-in antropológico”, numa referência à tradição milenar chinesa, para se referir ao novo papel do MinC: o reconhecimento de que havia no país uma potência cultural instalada e que era preciso estimular esses “pontos” para “transformá-los em energia cinética”.
Juca Ferreira concorda que houve uma inflexão a partir daquele momento, e relembra que “da origem, na gestão José Sarney, até Gil, o Ministério não havia dito a que veio, era uma criação puramente de marketing, uma soma aritmética dos órgãos que o compunham”. Entre os legados importantes desse período, ele cita a criação de uma política de Estado para o audiovisual, com o FSA, que levou o país a aumentar sua produção média de longas-metragens de 10 para 150 ao ano. “Foi onde mais avançamos”, diz.
Cultura como direito
Outra dimensão muito importante “inaugurada” com Gil e Juca, segundo o advogado e pesquisador Guilherme Varella, e que permanece sendo um desafio, é o entendimento da cultura sob a ótica da cidadania, como um direito. “Na Constituição de 1988 os direitos culturais estão postos pela primeira vez. Foi um divisor de águas”, afirma.
Para ele, essa visão da “complexidade cultural brasileira” assumida nos últimos anos pelo MinC levou o Ministério a aumentar a capacidade de gestão e orçamento (mais do que triplicado entre 2003 e 2011). “A capacidade institucional cresce a partir do reconhecimento do direito a ser alcançado”, observa.
Houve um inegável avanço em termos conceituais, segundo Varella, agora ameaçado pelos cortes fiscais da lógica neoliberal. Para o ex-ministro Juca, no entanto, as medidas de austeridade e a onda neoliberal no Brasil e no mundo não são a única explicação para o desastre, já que a perda orçamentária se iniciou no governo de Dilma.
Apesar de admitir que “o capital financeiro não tem muito afeto pela democracia”, e que “o projeto é transformar o Brasil no que o Chile foi na década de 70, um parque temático neoliberal”, ele nota que faltou à esquerda pensar um modelo de desenvolvimento para o país no pós-ditadura. “O desenvolvimento brasileiro é um pensamento economicista”, conclui.
O estudo de João Brant, enriquecido pelo debate, assim como os outros que estão sendo expostos nas sessões do “Observatório da Austeridade” na FES, subsidiarão o segundo volume do documento “Austeridade e Retrocesso” e livro a ser lançado pela Editora Autonomia Literária.
* Paula Quental é jornalista e integrante da equipe editorial do Brasil Debate
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