A maioria do povo evangélico é como um rebanho de ovelhas sem pastor na melhor das hipóteses, porque na pior, deixam-se pastorear por exploradores
“João 8:32: e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Soou um tanto um solene, um tanto blasfemo, o jargão do presidente eleito Bolsonaro, no domingo das eleições. O rito comemorativo seguiu-se após seu discurso de vitória, com oração coletiva e fervorosa liderada por Magno Malta em rede nacional e completou-se na terça-feira pós-eleição com a benção de Malafaia. O preço destes sacramentos, não se sabe. Por certo, não se trata apenas de uma ladainha enjoativa ou de um trejeito exótico à rotina republicana ideal. Em vez disso, trata-se da expressão simbólica de umas principais forças políticas do novo governo, a direita evangélica.
A bancada evangélica se organiza desde a Constituinte de 1988 como grupo de atuação corporativista, visando auferir vantagens diversas em colaboração com o “centrão”. Seu ativismo parlamentar tem o reforço dos pastores midiáticos, donos de mega-churchs e canais de comunicação. Juntos protagonizaram controvérsias públicas épicas, especialmente graças à oposição e à expansão dos direitos civis e sua atuação em prol da discriminação das minorias sexuais; engajamento em projetos do tipo “Escola Sem Partido” e o toma-lá-dá-cá em todos os governos recentes. A primícia da nova trupe eleita para a próxima legislatura é a defesa da terceirização irrestrita, inclusive no setor público. Num versículo: um escárnio à laicidade.
Agora, de cá do campo democrático, assistimos à proposição de um ministério da família (para que cargas d’água o país precisa disso?), mas Bolsonaro não está nem um pouco interessado em prover teto, trabalho, educação, pão e paz às famílias pobres; pelo contrário: lhes oferece armas, cadeia, emprego sem direitos. Ainda assim foi eleito com a cara de defensor da família. Isso muito em função da demonização da esquerda que, segundo as Fake News, iria distribuir kit gay e fechar igrejas.[1] É o que explica, parcialmente, que um segmento majoritariamente negro, feminino e pobre tenha votado em massa num candidato tão antidemocrático e antipopular.
E assim vai ficando clara a função da direita evangélica no governo, dar uma carranca beata à barbárie. O discurso religioso serve como espécie de “carimbo moral” ao projeto de poder em curso. Embala em lã, um lobo voraz. Transforma um apologeta da violência em “defensor da família”. A direita evangélica está com o governo exclusivamente para ser avant garde da mentira, cujo pai é o diabo (Jo.8:44).
Mas para além do marketing e da coalizão de cúpula, o projeto bolsonarista conseguiu extrair de dentro de cada um de seus eleitores, o que carregam de pior. Nisso o fascismo se revela menos passageiro do que parece. De repente, eis que irrompeu uma violenta reação patriarcal e neoliberal aos avanços civilizatórios mínimos que construímos desde a redemocratização. Uma reação patriarcal sim. Não digo que esses figurões sejam coerentes com o que pregam, a estes cabem muito mais o sabão de Jesus aos fariseus: “sepulcros caiados!”.
Mas seu desempenho eleitoral tem um forte moralismo que habita corações e mentes de todos aqueles que se sentem aviltados em suas masculinidades, seja pelo avanço das mulheres, da comunidade LGBT, enfim, pela fragilização das hierarquias de geração e gênero e a corrosão das formas tradicionais de autoridade. Não se aceita isso. Todos sabemos bem que a família tradicional brasileira sempre foi uma tragédia; estão aí filhos bastardos, adultérios e muita violência doméstica que me atestam essa triste razão, mas aprouve ao pater familias, na casa grande e na senzala, culpar o liberalismo moderno por todos males do mundo – ou como dito por Vladimir Safatle, culpar o professor de história.
E aqui cabe uma nota pouco romântica: a senzala não é menos autoritária que a casa grande, embora se expresse de outros modos. Por isso não me surpreende seu conservadorismo, mas o que espanta é que “os de baixo” tenham se deixado levar pelo moralismo autoritário de pastores milionários, enquanto amargam mil privações. Como estes líderes conseguiram enfiar goela abaixo dos crentes pobres, aquilo que não lhes mata a fome? Porventura terão tornado pedras em pães?
Vê-se mesmo que grande parte do sucesso da direita evangélica se deve também à incompetência da esquerda brasileira que hesita em pagar o preço da práxis, que preguiçosamente negligência o trabalho de base a troco de generalizações do tipo “os evangélicos são conservadores” e que, por vezes, mal esconde por sob sua crítica “ao conservadorismo”, o seu elitismo pequeno-burguês. É assim que enquanto se critica a direita evangélica, também se aproveita da ocasião para classificar o elemento popular como brega, alienante, caricato.
Apesar da esquerda, que sequer acena à parcela evangélica popular, nós conseguimos reverter 12 pontos percentuais de intenção de voto evangélico em Bolsonaro, na reta final da campanha. Ainda assim grupos evangélicos de ativismo progressista são sistematicamente ignorados pelo conjunto da esquerda brasileira, que no fundo, demonstrar querer os evangélicos apenas como base eleitoral, mas não se dispõe a compartilhar vanguarda do processo histórico com este grupo, em visibilizar as iniciativas progressistas no meio evangélico e investir em trabalho de organização popular. Lamento a miopia, mas aviso: não haverá projeto político viável de esquerda sem levar em consideração o povo evangélico. Isso não é uma profecia, é uma constatação.
A maioria do povo evangélico é como um rebanho de ovelhas sem pastor na melhor das hipóteses, porque na pior, deixam-se pastorear por exploradores. Isso ficou evidente nessas eleições quando um sujeito totalmente avesso à mensagem cristã, ganhou a confiança de tantos crentes. Entretanto este momento também serviu para escancarar os rachas, as brigas que estão postas no seio da Igreja. O futuro está em disputa. Resta saber se a esquerda emprestará à direita, as sacras máscaras religiosas para que, com mentiras, bravatas e moralismos, eles enganem o povo novamente; ou se enfim, a dita esquerda se descobrirá e se assumirá nas feições populares.
Vítor Queiroz de Medeiros é coordenador estadual da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito em São Paulo.
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