O evangelho segundo Lucas relata uma das mais conhecidas parábolas de Jesus, a do bom samaritano.
Viajando pela perigosa estrada que ligava Jerusalém a Jericó – uma descida de mil metros percorrida em pouco menos de trinta quilômetros –, um homem, possivelmente um judeu, é assaltado e agredido. Os machucados foram tão graves, que ele ficou prostrado no caminho, inconsciente. Por ali passaram dois religiosos, um sacerdote e um levita, pessoas ligadas diretamente aos serviços do Templo. Contudo, passaram “de largo”. Depois, apareceu um samaritano, membro de um povo discriminado pelos judeus. Este passou “perto” daquele homem. Vendo-o, “compadeceu-se dele”. Aproximou-se, ministrou-lhe os primeiros socorros e o levou a uma hospedaria, onde deveria receber mais cuidados. Como o samaritano precisava seguir viagem, deixou certa quantia com o hospedeiro e garantiu que, ao voltar, faria o reembolso por despesas a mais.
Essa parábola foi contada para ilustrar o que é o amor ao próximo e, mais especificamente, quem é esse próximo.
O próximo é qualquer um com quem tenhamos contato. Todas as pessoas que surgem no nosso caminho são dignas de nossa aproximação, atenção, compaixão e auxílio. Todos os membros da família humana estão implicados mutuamente, em alguma medida, na vida dos outros.
O olhar, os sentimentos e as ações do bom samaritano não foram condicionados a requisitos especiais, como religião ou etnia. Para ele, foi suficiente deparar-se com um ser humano. Nada além lhe importou.
Agir como o bom samaritano é superar tribalismos e sectarismos; é não aderir à lógica reducionista de perceber alguém somente enquanto integrante de determinado grupo, como fazem os movimentos ideológicos seculares e contra o que o cientista político e historiador Mark Lilla vem lançando severas e acertadas críticas. A parábola revela a ponte que possibilita a humanidade a transpor o abismo do preconceito, indiferença e ódio e que a põe na rota do trabalho pelo bem de qualquer um.
Ao longo dos séculos, não foram poucos os que captaram o universalismo ético do cristianismo. Por exemplo, o aristocrata William Wilberforce e seus amigos do Grupo de Clapham, que reunia jornalistas, pastores, artistas, empresários e parlamentares, lutaram contra a escravidão no Império Britânico movidos pela crença de que todos são iguais, pois criados pelo mesmo Deus, e que é nessa origem que reside a dignidade humana. Além da luta contra a escravidão, que durou décadas, combateram a corrupção na política, a jogatina, os duelos, esportes cruéis com animais, envolveram-se na reforma penal, promoveram a educação popular, defenderam a melhoria das condições de trabalho da classe operária e exigiram que o Império zelasse pelo bem-estar dos habitantes de suas colônias. O Grupo de Clapham entendeu que não é possível “separar o amor da justiça, pois o que o amor deseja, a justiça exige” (John Stott).
O universalismo ético do cristianismo foi o “pressuposto pré-político” (Jürgen Habermas) que serviu de fonte cultural da consciência normativa do Ocidente. Foi sobre esse pano de fundo religioso que foram identificados aqueles “valores em si que decorrem da essência do ser humano e que, por este motivo, são invioláveis em todos os detentores dessa essência” (Joseph Ratzinger), isto é, os direitos humanos.
Eduardo Bittar, professor de filosofia do direito, escreveu que “um sem-número de valores anteriormente referidos à tradição religiosa, na passagem da pré-modernidade à modernidade, foi drenado para o interior do discurso moderno e jusnaturalista dos direitos humanos. Isso significa dizer que, em grande parte, valores espirituais ou tradições morais, como aquisitivos culturais, foram transmitidos veladamente do discurso teológico-cristão pré-moderno ao discurso filosófico moderno”.
O Evangelho não se trata de um manifesto político, porém sua ética e ensinamentos calaram fundo na formação cultural e política do Ocidente.
O cristianismo comprova que a fé não está descolada da realidade desse mundo e que pode ser um instrumento valioso para a promoção do bem comum. Para o cristianismo, cidadania e fé caminham de mãos dadas.
*João Alfredo Beltrão Vieira de Melo Filho é graduado em Bacharelado em Direito pela Associação de Ensino Superior de Olinda (1999) e mestrado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010). Atualmente é professor assistente da Associação Caruaruense de Ensino Superior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil.
2 comentários:
Texto maravilhoso! Parabéns, Professor João Alfredo!
Texto lindo, reflexivo para nossos dias atuais.
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