Em seu livro A
democracia, o jurista austríaco Hans Kelsen não concebe como um sistema de
crenças em verdades absolutas pode gerar diálogo e tolerância e ser compatível
com um ambiente aberto ao livre exercício do pluralismo político e ideológico.
Jacques Derrida,
o filósofo da desconstrução, para quem não existem fatos, apenas
interpretações, via com bastante desconfiança as religiões abraâmicas
(judaísmo, cristianismo e islamismo), pois, em razão de seu monoteísmo e
exclusivismo, seriam verdadeiras chocadeiras de fundamentalismo e intolerância.
São opiniões
extremamente difundidas no meio acadêmico, entre escritores influentes,
formadores de opinião e na dita grande imprensa, ou seja, em ambientes de gente
esclarecida, onde transita a elite intelectual, autoconsiderada herdeira do
Iluminismo. Para esses, o recuo das grandes religiões monoteístas seria um
grande favor para o avanço da democracia e da tolerância.
É evidente que essa
forma de pensar é reducionista, preconceituosa e até antidemocrática. Numa
época em que já se fala em “pós-secularismo” e o retorno do sagrado, não cabe
mais ignorar o elemento religioso que caracteriza todas as culturas e defender
sua retirada da “arena pública de debates”. Antes, é muitíssimo mais condizente
com a democracia primeiramente entender as religiões, seus dogmas, doutrinas e
valores e, em segundo lugar, em quais pontos tais dogmas e valores podem
contribuir para a formação de cidadãos mais responsáveis, justos e implicados
positivamente na vida do outro, e até mesmo orientar políticas públicas em
diversas áreas.
No caso do
cristianismo e sua matriz hebraica, são flagrantes os pontos de contato com a
ideia moderna de democracia. Destacaremos alguns que consideramos
representativos.
É
característica da democracia o fato de, em nome da igualdade, todos serem
submetidos à Constituição e leis infraconstitucionais - do detentor do poder ao
cidadão comum. No livro de Deuteronômio, escrito possivelmente por Moisés mais
ou menos mil e quatrocentos anos antes de Cristo, no capítulo 17, vemos a ordem
de os reis israelitas terem diante de si um exemplar da “lei do Senhor” para
ser lido todos os dias com o fim de suas normas serem guardadas e cumpridas.
Assim, o governante não se consideraria “superior seus irmãos israelitas” (Dt.
17.20, Nova Versão Internacional) e seu reinado seria próspero.
Portanto, a
afirmação contida no artigo 5º da nossa Constituição Federal de que “todos são
iguais perante a lei” tem uma origem remotíssima, que vai muito além da Grécia
Clássica. Tinha razão Karl Loewenstein quando ensinou que as primeiras
manifestações do constitucionalismo, assinalado pela limitação do poder e
sujeição de todos os cidadãos às leis do país, ocorreram no antigo Israel.
No profetismo
hebraico, esse princípio era reforçado quando a nação israelita se desencaminhava
e todos – rei, sacerdotes, nobres e o povo em geral – eram alvo das severas
denúncias e críticas públicas dos profetas, que sempre os exortava a voltar à
lei, estatutos e mandamentos “do Senhor”, cujas implicações éticas eram de
ordem individual e social.
Outro argumento
bíblico compatível com a democracia é a ideia de que toda pessoa é um ser
caído, imperfeito. Pessoas imperfeitas, imperfeição esta originada no
egocentrismo, não podem se eternizar no poder e nem podem exercê-lo sem
acompanhamento. Ideologias, sistemas de governo, partidos políticos,
instituições – tudo isso está contaminado pela falibilidade humana. Daí
porque o poder deve ser limitado; devem existir mecanismos que interrompam ou
impeçam a continuação de mandatos; os governantes e demais integrantes da
Administração Pública devem ser fiscalizados e, quando necessário, punidos; as
decisões devem ser construídas pelo consenso, e não pela imposição de um ou de alguns
poucos.
Essa
desconfiança em relação ao ser humano ajuda inclusive a criar uma proteção
contra as utopias políticas, muitas das quais, não obstante prometerem um céu
na terra, resultaram em destruição e morticínio.
E a própria
democracia é beneficiada, pois, segundo esse “princípio da desconfiança”, está
sujeita a constante vigilância e aperfeiçoamento.
Outro argumento
importante é a ideia apresentada claramente no Evangelho de que o serviço em
benefício do outro é a marca da verdadeira grandeza. Jesus falou a seus
discípulos que “o maior entre vós seja como o menor; e quem governa, como quem
serve” (Lc. 22.26, Almeida Revista e Corrigida, 4ª ed.). Se a democracia
é um sistema político em que o povo é quem exerce a soberania, todas as
estruturas de governo devem estar a seu serviço, promovendo o bem de todos.
Antes de qualquer coisa, quem quer que assuma posições de liderança, governo e
gestão na esfera pública é um servidor do povo, e a única justificativa
aceitável para o exercício dessas funções em um contexto democrático é
precisamente o serviço.
Por fim, facilmente
se percebe no discurso e nas práticas de Jesus princípios de tolerância e de
respeito à opinião alheia. Seus métodos não envolviam coerção e imposição. Mesmo
o Evangelho tendo pretensões universalistas e o discurso de Jesus ser pontuado
aqui e ali por advertências relativamente à não aceitação daquilo que
apresentava como sendo a verdade, ao final a escolha sempre foi dos seus
ouvintes, de forma livre. O método de Cristo sempre foi o da “persuasão pelo
argumento”, cuja “expressão política” é a democracia (John Stott, Os
cristãos e os desafios contemporâneos).
Seria ousadia
de nossa parte afirmar de forma categórica que a democracia moderna é fruto
direto da religião da Bíblia. Porém, os pontos de contato são tantos, que nos
ajudam a entender um pouco o porquê de o “governo do povo, pelo povo e para o
povo” (Abraham Lincoln) ter sido pensado, aplicado e aperfeiçoado precisamente por
aqueles povos constituídos sobre um fundamento religioso, cultural e ético
marcadamente judaico-cristão.
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