02/09/19

Cidadania e Fé - Democracia e cristianismo por João Alfredo Beltrão Filho*


Em seu livro A democracia, o jurista austríaco Hans Kelsen não concebe como um sistema de crenças em verdades absolutas pode gerar diálogo e tolerância e ser compatível com um ambiente aberto ao livre exercício do pluralismo político e ideológico.
Jacques Derrida, o filósofo da desconstrução, para quem não existem fatos, apenas interpretações, via com bastante desconfiança as religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), pois, em razão de seu monoteísmo e exclusivismo, seriam verdadeiras chocadeiras de fundamentalismo e intolerância.
São opiniões extremamente difundidas no meio acadêmico, entre escritores influentes, formadores de opinião e na dita grande imprensa, ou seja, em ambientes de gente esclarecida, onde transita a elite intelectual, autoconsiderada herdeira do Iluminismo. Para esses, o recuo das grandes religiões monoteístas seria um grande favor para o avanço da democracia e da tolerância.
É evidente que essa forma de pensar é reducionista, preconceituosa e até antidemocrática. Numa época em que já se fala em “pós-secularismo” e o retorno do sagrado, não cabe mais ignorar o elemento religioso que caracteriza todas as culturas e defender sua retirada da “arena pública de debates”. Antes, é muitíssimo mais condizente com a democracia primeiramente entender as religiões, seus dogmas, doutrinas e valores e, em segundo lugar, em quais pontos tais dogmas e valores podem contribuir para a formação de cidadãos mais responsáveis, justos e implicados positivamente na vida do outro, e até mesmo orientar políticas públicas em diversas áreas.
No caso do cristianismo e sua matriz hebraica, são flagrantes os pontos de contato com a ideia moderna de democracia. Destacaremos alguns que consideramos representativos.
É característica da democracia o fato de, em nome da igualdade, todos serem submetidos à Constituição e leis infraconstitucionais - do detentor do poder ao cidadão comum. No livro de Deuteronômio, escrito possivelmente por Moisés mais ou menos mil e quatrocentos anos antes de Cristo, no capítulo 17, vemos a ordem de os reis israelitas terem diante de si um exemplar da “lei do Senhor” para ser lido todos os dias com o fim de suas normas serem guardadas e cumpridas. Assim, o governante não se consideraria “superior seus irmãos israelitas” (Dt. 17.20, Nova Versão Internacional) e seu reinado seria próspero.
Portanto, a afirmação contida no artigo 5º da nossa Constituição Federal de que “todos são iguais perante a lei” tem uma origem remotíssima, que vai muito além da Grécia Clássica. Tinha razão Karl Loewenstein quando ensinou que as primeiras manifestações do constitucionalismo, assinalado pela limitação do poder e sujeição de todos os cidadãos às leis do país, ocorreram no antigo Israel.
No profetismo hebraico, esse princípio era reforçado quando a nação israelita se desencaminhava e todos – rei, sacerdotes, nobres e o povo em geral – eram alvo das severas denúncias e críticas públicas dos profetas, que sempre os exortava a voltar à lei, estatutos e mandamentos “do Senhor”, cujas implicações éticas eram de ordem individual e social.
Outro argumento bíblico compatível com a democracia é a ideia de que toda pessoa é um ser caído, imperfeito. Pessoas imperfeitas, imperfeição esta originada no egocentrismo, não podem se eternizar no poder e nem podem exercê-lo sem acompanhamento. Ideologias, sistemas de governo, partidos políticos, instituições – tudo isso está contaminado pela falibilidade humana. Daí porque o poder deve ser limitado; devem existir mecanismos que interrompam ou impeçam a continuação de mandatos; os governantes e demais integrantes da Administração Pública devem ser fiscalizados e, quando necessário, punidos; as decisões devem ser construídas pelo consenso, e não pela imposição de um ou de alguns poucos.
Essa desconfiança em relação ao ser humano ajuda inclusive a criar uma proteção contra as utopias políticas, muitas das quais, não obstante prometerem um céu na terra, resultaram em destruição e morticínio.
E a própria democracia é beneficiada, pois, segundo esse “princípio da desconfiança”, está sujeita a constante vigilância e aperfeiçoamento.
Outro argumento importante é a ideia apresentada claramente no Evangelho de que o serviço em benefício do outro é a marca da verdadeira grandeza. Jesus falou a seus discípulos que “o maior entre vós seja como o menor; e quem governa, como quem serve” (Lc. 22.26, Almeida Revista e Corrigida, 4ª ed.). Se a democracia é um sistema político em que o povo é quem exerce a soberania, todas as estruturas de governo devem estar a seu serviço, promovendo o bem de todos. Antes de qualquer coisa, quem quer que assuma posições de liderança, governo e gestão na esfera pública é um servidor do povo, e a única justificativa aceitável para o exercício dessas funções em um contexto democrático é precisamente o serviço.
Por fim, facilmente se percebe no discurso e nas práticas de Jesus princípios de tolerância e de respeito à opinião alheia. Seus métodos não envolviam coerção e imposição. Mesmo o Evangelho tendo pretensões universalistas e o discurso de Jesus ser pontuado aqui e ali por advertências relativamente à não aceitação daquilo que apresentava como sendo a verdade, ao final a escolha sempre foi dos seus ouvintes, de forma livre. O método de Cristo sempre foi o da “persuasão pelo argumento”, cuja “expressão política” é a democracia (John Stott, Os cristãos e os desafios contemporâneos).

Seria ousadia de nossa parte afirmar de forma categórica que a democracia moderna é fruto direto da religião da Bíblia. Porém, os pontos de contato são tantos, que nos ajudam a entender um pouco o porquê de o “governo do povo, pelo povo e para o povo” (Abraham Lincoln) ter sido pensado, aplicado e aperfeiçoado precisamente por aqueles povos constituídos sobre um fundamento religioso, cultural e ético marcadamente judaico-cristão.  

João Alfredo Beltrão Filho -  é graduado em Bacharelado em Direito pela Associação de Ensino Superior de Olinda (1999) e mestrado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010). Atualmente é professor assistente da Associação Caruaruense de Ensino Superior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil.  Coordenador do Fórum Regional de Liberdade Religiosa para a Associação Pernambucana Central da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Forlir-APeC).



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