Ao receber a incumbência de tratar sobre a temática envolvendo fé e cidadania, imponho-me a respeitosa e humilde condição de pessoa interessada em compreender os meandros de uma relação contínua e inevitável entre esses fenômenos que, por vezes, entranham-se numa simbiose perfeita e, noutras circunstâncias, põem-se em paralelo ou mesmo se repelem de modo irreconciliável. As mudanças e instabilidades sociopolíticas que permeiam o mundo ocidental na atualidade (crises econômicas, migratórias, multiculturalismo, relativismo etc) têm renovado de modo extremamente sério e urgente os debates quanto ao risco de supressão das mais fundamentais liberdades públicas, dentre elas, especialmente, a liberdade religiosa, que, para muitos, é o ponto de partida da própria dignidade da pessoa humana.
É fato que a concepção racional e secular sobre o princípio da dignidade da pessoa humana como fator de sustentação dos direitos fundamentais, cuja positivação em sentido quase universal foi importante, sobretudo em razão das barbáries promovidas no Sec. XX, por meio das quais ficaram evidentes os equívocos do positivismo kelseneano, a ineficiência do materialismo histórico marxista e do racionalismo científico da modernidade. Se o princípio normativo da dignidade da pessoa humana compreende um valor, fundamental identificar o que ele realmente enseja, a fim de que o Estado seja instrumento de sua mais abrangente e adequada efetivação. Canotilho leciona que a dignidade humana não pode se restringir à defesa pura e simples dos “direitos pessoais tradicionais”, nem deve ser invocada para a construção de uma “teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a no espaço dos direitos econômicos, sociais e culturais” e esse entendimento impõe ao Direito o diálogo e o entrelaçamento das ciências.
Partindo, portanto, de uma concepção judaico-cristã, a despeito da legitimidade expressa pela normativização jurídica, a dignidade da pessoa humana caracteriza-se, na verdade, como um valor absoluto, inafastável e inerente à autêntica compreensão acerca do que é o ser humano e de qual é a sua essência e natureza, cuja compreensão não se restringe a uma dimensão puramente material, pois também se compõe de aspectos psíquico e espiritual, sendo que tais conteúdos costumam ser objetos da Teologia, da Antropologia, da Epistemologia etc. Ao Direito e à Política, no entanto, resta reconhecer a condição de ser humano, criando-lhe instrumentos adequados à sua plena preservação e vasto desenvolvimento. Ora, os fenômenos jurídicos e a ciência do Direito não se confundem, apenas estabelecem relações que permitem que cada um possa conhecer-se a si mesmo e ao mundo em que vive. É na condição e natureza humanas que se encontra a razão de ser da dignidade que o Estado democrático deve tutelar, posto que ele não a cria, tão somente a assegura.
Compreendendo-se a liberdade e a dignidade da pessoa humana como pilares fundamentais da democracia e do próprio constitucionalismo moderno, o receio fundado de supressão ou prejuízo a esses postulados vêm frequentemente sendo suscitados por doutrinadores e estudiosos em vários lugares do mundo. Enquanto alguns teorizam acerca da liberdade em seus aspectos negativos (ausência de embaraços, impedimentos ou coações), outros destacam-na em seu âmbito positivo (o alcance da felicidade pessoal, a promoção do bem comum coletivo e o sentido da vida).
O certo é que a liberdade religiosa se contempla como um elemento indissociável da própria condição humana de ser e que foi erigido ao patamar de direito humano
fundamental nas mais diversas constituições e em inúmeros documentos internacionais, como as próprias Declarações de Direitos Humanos de 1789 e de 1948.
A liberdade religiosa é reconhecida como instrumento fundamental de cidadania, pois parte do paradigma de que o ser humano deve ser conscientemente livre para viver sua crença, para mudar de crença ou para não crer e isso deve ser assegurado a todos indistintamente. Por óbvia compreensão, consciência e crença são elementos que não podem ser impostos a ninguém, mas, da mesma forma, não podem ser surrupiados, negados ou ignorados pelo Estado e pelos demais indivíduos. O fato é que o exercício concreto da liberdade religiosa carrega consigo seus consectários diretos e lógicos, dentre eles a igualdade e as liberdades de pensamento, consciência, crença, culto, reunião, expressão, proselitismo e vivência segundo as próprias convicções, sem que o indivíduo possa sofrer discriminações ou interferências do Estado (5º, caput e VIII, da CF/88) ou de quem quer que seja em razão de seu exercício, seja no espaço privado, ou no público.
Compreender o fenômeno religioso como mecanismo necessário ao pleno exercício da cidadania é importante para que não se constranja forçosamente o indivíduo a agir em desconformidade com aquilo em que acredita, obrigando-o, ainda que forma velada, a renunciar à própria fé, o que fatalmente implicaria agredi-lo em sua própria condição humana dual, qual seja, matéria e espírito, levando-o a um tratamento desconforme com o Direito e com a dignidade que é inerente ao ser humano.
Como reconhecem autores como Canotilho, a dignidade da pessoa humana se verifica quando ao indivíduo se assegura o desenvolvimento pleno de seus potenciais como cidadão comunitário e se lhe são conferidos os meios necessários à sua digna sobrevivência material e espiritual.
Não obstante o secularismo ocidental ser uma realidade, para o constitucionalismo contemporâneo, a ausência de liberdade religiosa ou sua constante violação afastam a dignidade da pessoa humana, sobretudo porque, como se viu, a liberdade religiosa não representa um direito singular, pois seu conteúdo é complexo, comportando aspectos individuais e coletivos.
No Brasil, a CF/88 pautou-se numa ordem jurídica constitucional de neutralidade benevolente e cooperativa ao invocar a proteção de Deus no preâmbulo, ou mesmo ao reconhecer o apoio de interesse mútuo entre Estado e religião, o que evidencia o respeito e a valorização que o Estado brasileiro destina à relação do ser humano com a transcendência e a espiritualidade, comprometendo-se com a liberdade religiosa como substrato essencial da dignidade da pessoa humana.
Assim sendo, mais que um direito contemplado em convenções ou tratados internacionais e na Carta Magna, a liberdade religiosa constitui um postulado fundamental da dignidade humana, sem a qual não se pode legitimamente exercitar-se a cidadania. Se a democracia é um regime político fundamental ao desenvolvimento das sociedades modernas, o exercício livre da espiritualidade constitui-se em marco essencial e inerente à própria existência humana.
*Kézia Milka Lyra de Oliveira, advogada e professora da ASCES/UNITA, mestranda em Direito e Pós graduanda internacional em Direitos fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/RS), em cooperação com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), com o Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra e com o Oxford Centre for Christianity and Culture/Regent's Park College da University of Oxford.
37 comentários:
Excelente texto.
Texto excelente. Não poderia esperar outra reflexão partindo dessa grande professora e,sobretudo, cristã. O leitor só tem a ganhar.
Obrigada!
Obrigada, minha querida! Uma honra tê-la como leitora!
Parabéns ,professora kézia, pelo brilhante trabalho que desemvolve com sua equipe ,em CARUARU e Regiao,acerca de diversos temas relevantes ,como esse que trata da Cidadania e Fé. Na qualidade de cidadãos "Precisamos nos aprofundar " em todos os assuntos principalmente, no que se refere ao cristianismo,pois,necessitamos servir a Deus independente de placa de igreja,religião,classe social etc. Deus lhe abençoe sempre, professora ,Kézia e demais envolvidos nesta tão grandiosa obra.
Texto inspirador. Em um momento histórico de extrema superficialidade, no âmbito das relações e produções humanas, encontro a excelência desse texto, revelada na forma de perceber a relação entre dignidade e liberdade, diversa do que, cotidianamente, se imagina e se faz. Pensar ambos os objetos para além das fronteiras do “apenas jurídico”, para um/a jurista é desafiador. Parabéns, Kesia, pelo presente que nos deu.
Excelente texto! Falar sobre religião e cidadania de forma tão sensível e ao mesmo tempo incisiva, mostrando que religião pode ser discutida sim de forma responsável. ����������
Excelente texto! Parabéns aos nobres colegas e irmãos Profa Kezia e Prof. João Alfredo! É dado ao ser humano a capacidade de escolha, no entanto essa deve ser feita a partir de ouvir, ler e meditar, dia e noite. Esse texto nos traz essa ampla possibilidade!
Texto Maravilhoso, escrito por uma professora maravilhosa que tive o prazer de ser aluna. É sem dúvida um tema muito complexo, que foi tratado de forma profunda e delicada, mostrando que podemos discutir e refletir sobre cidadania e fé de forma respeitosa e sábia.
Muito obrigada!
Muito honrada com suas palavras, meu querido!
Muito obrigada por sua análise!
Muito obrigada pelas lúcidas palavras!
Muito obrigada, minha querida! Como sempre, respeitosa e bondosa em suas palavras!
Parabéns Kesia! Mais uma vez se posicionando de forma coerente e com muito respeito.
"Texto excelente, primoroso, instigante e atualíssimo!! Parabéns!! Diante da pessoa humama e da profissional que és não poderia esperar que fosse de outra forma! Grata pela oportunidade de aprofundamento sobre o tema, mesmo que exista a possibilidade de divergências de pensamentos, o que aliás, só nos proporciona também a possibilidade de crescimento! Orgulhosa e feliz por você! Já aguardo os próximos ! Parabéns!"
Enviado por Yara Galvão
Obrigada, Patrícia! Respeito sempre!
Muito feliz por suas palavras, minha querida! Obrigada por sua atenção e delicadeza!
PARABÉNS PELO PRECIOSO ESCLARECIMENTO, AJUDANDO- A TER MELHOR ELUCIDAÇÃO DO RESPEITO AO SER HUMANO COMO GENTE E PESSOAS COM SUA DIGNIDADE HUMANA! GENTE, E GENTE! QUE CONTINUES SEMPRE ASSIM! PARABÉNS!
Parabéns pelo texto, professora! Excelente análise e sábia colocação, como sempre!
Muito obrigada!
Agradeço muitíssimo pelas observações tão respeitosas!
Parabéns! Colocações extremamente pertinentes. Excelente!
Agradeço muitíssimo!
Parabéns professora pelo excelente texto, não poderia ser diferente vindo da Sra. Que Deus lhe abençoe e lhe capacite cada dia mais para que nós leitores tenhamos o privilégio de ler seus trabalhos. Beijos, fica na paz!
Obrigada, Kátia! Uma alegria tê-la como leitora!
Muito bom o texto, a liberdade religiosa é um direito sagrado que deve ser protegido e resguardado pelo estado e valorizado pelo cidadão, tanto quanto a liberdade de expressão.
Agradeço as considerações!
Congrats, Kézia. Em pleno século XXI ainda se vê e sente o peso do preconceito por certas religiões e doutrinas religiosas! Riquíssimo texto!
Obrigada, minha querida!
Parabéns, um texto que contempla a ética,
o direito de professar credo religioso sem sem desrespeitado, sem o preconceito tão cruel que algumas regiões ainda enfrentam atualmente. Tento orgulho de ver o quanto és competente. Grande professara e educadora. Deus continue te abençoando.
Muito obrigada pelo comentário tão respeitoso!
Belíssimo texto, é um conjunto de informações enriquecedoras que nos ajuda a quebra alguns paradigmas e preconceitos, que nós enquanto integrantes da sociedade criamos. Parabéns Professora, que Deus continue lhe abençoando, orgulho em ser seu aluno, lhe admiro demais!
Lisonjeada com suas palavras, querido. Muito obrigada!
Parabéns pelo artigo professora!
Que bom que esse assunto está tendo visibilidade e sendo tratado de forma tão séria e respeitosa.
O direito à liberdade religiosa é muito precioso, somos um país privilegiado por tê-lo, mas ainda há muito a avançar e tenho certeza que a iniciativa de vocês vai ajudar muito a promover o respeito e a tolerância religiosa.
Que Deus os abençoe e continue capacitando vocês pra essa missão!
Obrigada por suas palavras!
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