Individualismo e isolamento são dois dos vários males que caracterizam
a chamada “modernidade líquida”. Vínculos familiares em certos lugares vêm se
tornando uma raridade. Seguir tradições soa como coisa antiquada e é traduzido
como um embaraço à liberdade: por que costumes e modos de vida estabelecidos em
outra época deveriam influenciar a conduta e escolhas do homem do século XXI?
Milhões passam boa parte da vida cuidando apenas de si,
trabalhando exclusivamente para a realização dos próprios interesses e sem
desenvolver um senso de pertencimento. O desenvolvimento tecnológico parece que
vem contribuindo para o aprofundamento desse processo, e o horizonte não indica
mudanças nesse cenário.
Transtornos mentais, dificuldades de relacionamento e
alienação da realidade são o preço cobrado pela fragmentação social, fazendo-se
imperiosa a revalorização das conexões familiares, a criação de redes de sólidas
redes amizades e o estabelecimento de um sentido para a vida relacionado a
realidades e valores que transcendam o puro e simples interesse individual.
A igreja do primeiro século – talvez a experiência
comunitária mais revolucionária que já tenha existido – supria necessidades de
acolhimento, pertencimento e amparo material, isso independentemente de classe
social, origem, etnia, sexo ou condição financeira. Conforme Paulo escreveu em
sua carta aos cristãos da Galácia, não havia judeu ou grego, servo ou livre,
homem ou mulher, pois todos eram um em Cristo (cf. Gálatas 3:28).
A ideia de “unidade na diversidade” era real entre os
primeiros cristãos, os quais, além de integrarem uma comunidade inclusiva e sem
discriminações, compartilhavam a mesma esperança de que um dia viveriam juntos
para sempre com Deus numa Terra completamente renovada. A igreja já era a
antecipação dessa era vindoura. Como igreja, os cristãos seguiam (e devem
seguir) juntos em mútuo auxílio para que ninguém desista ou se desvie do
caminho.
O evangelista Lucas registrou que os cristãos de sua época
“estavam todos unidos e possuíam tudo em comum; vendiam bens e posses, e os
repartiam segundo a necessidade de cada um. Diariamente acorriam fielmente e
unânimes ao templo; em suas casas partiam o pão, compartilhavam a comida com
alegria e simplicidade sincera”. Os membros da igreja tinham “uma só alma e um
só coração. Não chamavam de própria nenhuma das suas posses”. Entre eles “não
havia indigentes”, e as viúvas, grupo particularmente vulnerável
economicamente, deviam ser atendidas todos os dias (Atos 2:44-46; 4:32, 34;
6:1).
A partilha de bens ou do produto de sua venda era voluntária
e tratava-se “de um ato natural numa sociedade fundada com base na simpatia e
na negação do eu, não na lei do interesse próprio e da competição” (Comentário
bíblico adventista do sétimo dia, vol. 6, p. 139). A partilha também era
criteriosa, pois dependia do grau de necessidade e deveria ser sistemática,
como no caso do auxílio às viúvas. “Os direitos de propriedade eram suspensos
voluntariamente pela conduta espontânea dos membros da comunidade cristã, sob o
regime da lei do amor” (idem, p. 164, 165).
Amor, fé, esperança, união, alegria, simplicidade e solidariedade
aguardavam todos que aderissem à comunidade de Jesus. O sofrimento era uma
oportunidade de fortalecer ainda mais a fé e os laços comunitários, e os
líderes da igreja trabalhavam incansavelmente para manter a unidade, mesmo sob
feroz perseguição.
Nessa “era do vazio” (Gilles Lipovetsky), na qual as pessoas
caminham sobre o arenoso e instável terreno do relativismo e da vida sem
sentido, e numa sociedade atomizada que louva o individualismo, a igreja,
quando age conforme o projeto original, pode ministrar a medicação que trará
cura a doenças da alma e amenizar os seus efeitos no mundo.
A igreja, nas suas mais variadas expressões, possui seus
próprios valores e princípios de organização e ação. Possui também uma história
de quase dois mil anos, com momentos gloriosos e vergonhosos, de luz e de
trevas. Portanto, a igreja já acertou e errou o suficiente para aprender e
assumir definitivamente, como comunidade de Jesus, que um dos seus papéis é de ser
porto seguro para os que estão à deriva e família para os desgarrados.
Para um mundo preso no labirinto da modernidade líquida, a
igreja deve manter sua posição no alto da colina, mostrando, com amor,
intrepidez e mansidão, o melhor caminho e mantendo suas portas abertas a todos que
anseiam por cura.
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