13/11/19

Cidadania e Fé - Uma alternativa ao vazio existencial e à fragmentação social por João Alfredo*


Individualismo e isolamento são dois dos vários males que caracterizam a chamada “modernidade líquida”. Vínculos familiares em certos lugares vêm se tornando uma raridade. Seguir tradições soa como coisa antiquada e é traduzido como um embaraço à liberdade: por que costumes e modos de vida estabelecidos em outra época deveriam influenciar a conduta e escolhas do homem do século XXI?
Milhões passam boa parte da vida cuidando apenas de si, trabalhando exclusivamente para a realização dos próprios interesses e sem desenvolver um senso de pertencimento. O desenvolvimento tecnológico parece que vem contribuindo para o aprofundamento desse processo, e o horizonte não indica mudanças nesse cenário.
Transtornos mentais, dificuldades de relacionamento e alienação da realidade são o preço cobrado pela fragmentação social, fazendo-se imperiosa a revalorização das conexões familiares, a criação de redes de sólidas redes amizades e o estabelecimento de um sentido para a vida relacionado a realidades e valores que transcendam o puro e simples interesse individual.
A igreja do primeiro século – talvez a experiência comunitária mais revolucionária que já tenha existido – supria necessidades de acolhimento, pertencimento e amparo material, isso independentemente de classe social, origem, etnia, sexo ou condição financeira. Conforme Paulo escreveu em sua carta aos cristãos da Galácia, não havia judeu ou grego, servo ou livre, homem ou mulher, pois todos eram um em Cristo (cf. Gálatas 3:28).
A ideia de “unidade na diversidade” era real entre os primeiros cristãos, os quais, além de integrarem uma comunidade inclusiva e sem discriminações, compartilhavam a mesma esperança de que um dia viveriam juntos para sempre com Deus numa Terra completamente renovada. A igreja já era a antecipação dessa era vindoura. Como igreja, os cristãos seguiam (e devem seguir) juntos em mútuo auxílio para que ninguém desista ou se desvie do caminho.

O evangelista Lucas registrou que os cristãos de sua época “estavam todos unidos e possuíam tudo em comum; vendiam bens e posses, e os repartiam segundo a necessidade de cada um. Diariamente acorriam fielmente e unânimes ao templo; em suas casas partiam o pão, compartilhavam a comida com alegria e simplicidade sincera”. Os membros da igreja tinham “uma só alma e um só coração. Não chamavam de própria nenhuma das suas posses”. Entre eles “não havia indigentes”, e as viúvas, grupo particularmente vulnerável economicamente, deviam ser atendidas todos os dias (Atos 2:44-46; 4:32, 34; 6:1).
A partilha de bens ou do produto de sua venda era voluntária e tratava-se “de um ato natural numa sociedade fundada com base na simpatia e na negação do eu, não na lei do interesse próprio e da competição” (Comentário bíblico adventista do sétimo dia, vol. 6, p. 139). A partilha também era criteriosa, pois dependia do grau de necessidade e deveria ser sistemática, como no caso do auxílio às viúvas. “Os direitos de propriedade eram suspensos voluntariamente pela conduta espontânea dos membros da comunidade cristã, sob o regime da lei do amor” (idem, p. 164, 165).
Amor, fé, esperança, união, alegria, simplicidade e solidariedade aguardavam todos que aderissem à comunidade de Jesus. O sofrimento era uma oportunidade de fortalecer ainda mais a fé e os laços comunitários, e os líderes da igreja trabalhavam incansavelmente para manter a unidade, mesmo sob feroz perseguição.

Nessa “era do vazio” (Gilles Lipovetsky), na qual as pessoas caminham sobre o arenoso e instável terreno do relativismo e da vida sem sentido, e numa sociedade atomizada que louva o individualismo, a igreja, quando age conforme o projeto original, pode ministrar a medicação que trará cura a doenças da alma e amenizar os seus efeitos no mundo.
A igreja, nas suas mais variadas expressões, possui seus próprios valores e princípios de organização e ação. Possui também uma história de quase dois mil anos, com momentos gloriosos e vergonhosos, de luz e de trevas. Portanto, a igreja já acertou e errou o suficiente para aprender e assumir definitivamente, como comunidade de Jesus, que um dos seus papéis é de ser porto seguro para os que estão à deriva e família para os desgarrados.
Para um mundo preso no labirinto da modernidade líquida, a igreja deve manter sua posição no alto da colina, mostrando, com amor, intrepidez e mansidão, o melhor caminho e mantendo suas portas abertas a todos que anseiam por cura.         

*João Alfredo Beltrão Filho -  é graduado em Bacharelado em Direito pela Associação de Ensino Superior de Olinda (1999) e mestrado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010). Atualmente é professor assistente da Associação Caruaruense de Ensino Superior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil.  Coordenador do Fórum Regional de Liberdade Religiosa para a Associação Pernambucana Central da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Forlir-APeC).


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