08/02/24

INCONTEMPLAÇÃO FRENÉTICA OU A TEMPORALIDADE DAS REDES por Fred Santiago


O ato de contemplar exige atenção, pausa, entrega. Ao contemplarmos iniciamos um movimento, através do qual nos perdemos para em seguida nos encontrarmos na relação com o objeto contemplado. Esse movimento, permeado por minúcias e sutilezas, não resiste à pressa. Necessariamente, transcorre lentamente, num atento demorar-se.

A contemplação é, portanto, aspecto fundamental da existência, presente, embora não seja facilmente percebida, no universo das relações sociais. As relações afetivas, só para citarmos um exemplo, são impensáveis sem o ato de comtemplar. Os enamorados se contemplam porque se entregam, “esquecendo” tudo que os rodeia para serem tomados por completo, contemplando-se mutuamente.

O problema é que, na sociedade atual, marcada pela rapidez do universo digital, estamos perdendo a capacidade de contemplar. Estamos sempre com pressa, tendo a sensação de que o tempo nos foge. Experimentamos uma nova experiência de tempo.

É no universo das redes sociais que essa experiência de tempo se mostra mais nítida. A imensidão de informações, imagens, textos, áudios, etc, imprimiu um ritmo muito rápido à vida, que, entre outras coisas, modificou nossa percepção da realidade, fazendo com que desenvolvêssemos uma noção de tempo, que nos retirou a capacidade da contemplação. Assim, vivemos hoje uma temporalidade a qual podemos chamar de “incontemplação frenética”

O incontemplador frenético não para. Sente uma necessidade incontrolável de acompanhar absolutamente tudo que é postado nas redes sociais. Cinco minutos sem o bip de uma mensagem no seu smartphone lhe causam pânico, pois lhe trazem a sensação de estar fora do mundo. O estado de incontemplação frenética retira do indivíduo a capacidade de realizar qualquer tipo de atividade sem proceder, ao mesmo tempo,o monitoramento sistemático das redes sociais: assistir a um filme, acompanhar um jogo de futebol, desfrutar de uma boa conversa entre amigos, nada disso escapa à velocidade avassaladora da incomtemplação frenética, pois todas essas coisas “demoram”, ao contrário da temporalidade das redes sociais onde tudo é acelerado. Nesse sentido, vivenciar os eventos da vida cotidiana ganha ares de “perda de tempo”.

A incontemplação frenética tem até uma dimensão patológica, que pode ser observada numa síndrome surgida recentemente, conhecida pela sigla FOMO do inglês “fear of missing out”, que quer dizer o medo de ficar de fora. Ou seja, a pessoa passa a sentir uma necessidade irresistível de ter que acompanhar tudo que está ocorrendo no universo digital, pois, caso isso não ocorra, é tomada por uma sensação de incompletude, como se o tempo estivesse passando e o indivíduo ficando para trás. Essa noção de tempo fez das pessoas prisioneiras do instante presente, criando uma espécie de hiperpresentismo, onde cada momento é rapidamente substituído pelo momento seguinte, restando somente uma sucessão de agoras. Esses agoras são cada vez mais rápidos, para que se evite ao máximo a existência de intervalos, pois estes significam “perder tempo”. Como afirma o filósofo sul coreano Byung-Chul Han[2]:

“Se os intervalos se abreviam, a sucessão de acontecimentos acelera-se. A densificação de acontecimentos, informações e imagens torna impossível a demora. O rápido encadeamento de fragmentos não deixa lugar para uma demora contemplativa”.

Na temporalidade das redes, a velocidade se apresenta como qualidade indispensável. Quanto mais veloz, melhor. Uma das plataformas mais acessadas pelos incontempladores frenéticos, o Tik Tok, estabelece o limite máximo de cinco minutos para a exibição de vídeos. Cabe ressaltar que, esse limite vale apenas para os perfis com uma grande quantidade de seguidores. No geral, os vídeos dessa plataforma duram apenas sessenta segundos.

O mecanismo de aceleração das mensagens de áudio diz muito sobre o estado de incontemplação frenética. Aceleramos a fala do outro, pois não temos paciência para ouvir. Ouvir o áudio na velocidade normal nos traz a sensação de estar perdendo tempo. Assim, acionamos a velocidade 2x no intuito de, rapidamente, passarmos para o próximo e assim, indefinidamente.

Esse mecanismo de aceleração da voz do outro provoca a falsa sensação de controle do tempo, como se coubesse ao indivíduo estabelecer a duração de um evento. É como se a pessoa tentasse, em vão, sincronizar o tempo da vida concreta com o tempo das redes sociais. Ao robotizar o outro, através da aceleração de sua fala, o indivíduo acaba por estabelecer a rapidez como mediação necessária ao desenvolvimento das relações interpessoais. Dessa forma, quando não se pode manipular o ritmo da voz do outro, no caso de uma conversa pessoalmente, tem-se a sensação de que aquelas pessoas que se comunicam mais lentamente se tornaram empecilhos à necessidade de se “ganhar tempo”. Considerando esse aspecto, fica claro, portanto, que o estado de incontemplação frenética pode ser prejudicial, também, a prática da alteridade.

A extrema fugacidade que caracteriza a temporalidade das redes desfaz qualquer tentativa de se formular uma orientação temporal, pois a relação entre passado, presente e futuro encontra-se inteiramente fragmentada. É, novamente, Byung-Chul Han[3] que nos ajuda a melhor compreender esse aspecto:

“As informações fragmentam o tempo. O tempo é reduzido a uma faixa estreita de coisas atuais. Falta-lhe amplitude e profundidade temporais. A compulsão pela atualização desestabiliza a vida. O passado não produz mais qualquer efeito no presente. O futuro se reduz a um update permanente de coisas atuais”.

Na experiência de tempo da incontemplação frenética o presente é autoreferente, gira ao redor de si mesmo e se apresenta como única temporalidade possível ou mesmo, por mais paradoxal que possa parecer, como uma forma de destemporalização. O destemporal, nesse caso, não significa a desrealização do tempo. Pelo contrário, destemporalizar é a forma mais aguada de intensificação do tempo, que desemboca numa espécie de tirania do instante.

Essa absolutização do presente traz como uma das suas consequências uma forma bastante peculiar de memória, que se torna evidente quando comparamos os modos tradicionais de fotografia com as atuais selfies. A fotografia analógica era precedida por uma intenção memorialística, ou seja, fotografar significava, em grande medida, guardar marcas do passado para serem lembradas no futuro. Podemos afirmar, portanto, que a foto analógica continha uma espécie de senso de posteridade, o que lhe conferia uma temporalidade para além do imediato. A selfie, ao contrário, é desprovida de qualquer aspecto de recordação. Esse modo de fotografar atende, na realidade, a uma necessidade de exposição imediata. A selfie é tirada, postada, vista e esquecida quase que imediatamente. Assim, não há nela qualquer intencionalidade de marca temporal. Ou seja, a selfie não é para o depois, mas para o agora. Cria-se, assim, uma espécie de memória instantânea, bastante coerente com a temporalidade da incontemplação frenética.

Ao concentrar uma gigantesca quantidade de conteúdos o espaço digital, em tese, ofereceria a possibilidade de aproveitar o tempo, pois reuniria as mais variadas formas de entretenimento, literalmente na palma da mão. No entanto, o que se observa é exatamente o contrário: nunca nos queixamos tanto da falta de tempo. Essa faceta das redes sociais traz à lembrança os Homens Cinzentos do romance Momo e o Senhor do Tempo[4] de autoria de Michael Ende. Nesse livro, os Cinzentos se apresentam como responsáveis pela Caixa Econômica do Tempo e incentivam as pessoas a pouparem tempo para gastarem posteriormente. Porém, o que ocorre é que os Homens Cinzentos são, na verdade, ladrões, que acabam por roubar todo o tempo guardado pelas pessoas.

Homens Cinzentos da atualidade, as redes sociais parecem absorver o tempo, acelerando-o ao máximo, ao ponto de nos submeterem a uma experiência temporal, que nos rouba a capacidade de contemplar.


[2] HAN, Byung-Chul. O aroma do tempo. Um ensaio filosófico sobre a arte da demora. Lisboa : Relógio D`água, 2016.

[3] HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Petrópolis, RJ : Vozes, 2023.

[4] ENDE, Michael. Momo e o senhor do tempo. São Paulo : Martins Fontes, 1996.

Um comentário:

LUCIMARY ELISABETE DOS PASSOS disse...

Que texto fantástico Prof.Fred Santiago, que sem dúvida é para ser lido e repetido muitas, para alcançarmos um estado de consciência a que estamos, reduzindo nosso tempo, nossa vida.
Parabéns pela excelência do texto!