21/03/18

A ‘enxada’ permanece - Jénerson Alves


Nem sempre as contribuições históricas estão em grandes acontecimentos. Algumas situações aparentemente simples podem provocar grandes repercussões. Foi assim com o encontro de Edwin Markham (1852-1940) e Gilberto Freyre (1900-1987). É bom lembrar que Markham foi um poeta estadunidense com um relevante trabalho. Na primeira metade do século XX, seus versos eram bastante recitados nos Estados Unidos. 

Homem com uma enxada - Jean François Millet
Entre suas obras, destaca-se ‘The Man with the Hoe’, publicado no ano de 1899 pelo jornal San Francisco Examiner, mas depois reproduzido em vários periódicos. Em português, o título do poema é ‘O Homem com uma Enxada’, e o texto remete a um quadro do francês Jean-François Millet. Na pintura, vê-se um trabalhador rural com vestes campesinas e nítida expressão de cansaço. Além de representar uma cena do cotidiano, o quadro é carregado de um realismo pictórico (característico de Millet, o qual tornou-se inspiração para pintores como Vincent van Gogh e Camille Pissarro). No poema, Markham faz uma leitura do caráter social da pintura, ao descrever que há na face do trabalhador “o vazio dos tempos / e a carga do mundo sobre seu ombro”. Apresentado como sendo um “escravo da roda do trabalho”, o eu-lírico denúncia que o camponês é transformado pelos dominadores em uma espécie de animal, ou até mesmo uma coisa monstruosa, distorcida e de alma extinta (“This monstrous thing distorted and soul-quencht”). Essa obra conferiu uma grande fama ao escritor.

Pois bem. Em 1920, o jovem Gilberto Freyre conheceu Markham, graças à influência do professor Armstrong. Na época, o recifense estava cursando a graduação em Ciências Políticas e Sociais na Universidade de Baylor, nos Estados Unidos, além de já ser correspondente do Diário de Pernambuco. No livro ‘Tempo morto e outros tempos’, formada por fragmentos de cadernos íntimos de Freyre, o autor de ‘Casa-grande e senzala’ descreveu o poeta como “um velhinho com ar bom de Papai Noel de cartão-postal”. Ademais, enalteceu o sentido social da poesia de Markham, especificando que possuía um sentido “trabalhista”. “Trabalhista, note-se bem; e não socialista. Pois isso de socialismo aqui é seita: ideia de muito poucos. Enquanto o trabalhismo ou laborismo, não: empolga muita gente”, comentou Freyre, que ainda criticou os aspectos literários da obra de Markham, dizendo que sua arte poética não era “das mais altas”.

Apesar disso, é perceptível que o trabalho do norte-americano, apontando os elementos de exploração deformantes do ser humano, influenciou os pensamentos do intelectual brasileiro que escreveria obras fundamentais para compreender a formação da feição da sociedade brasileira. Ainda hoje, faz-se necessário que estudantes e pesquisadores se debrucem sobre essa temática, buscando compreender a identidade do país, que passa por tantas transformações.

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