Apesar de uma vida de histórias e fundamentais realizações nas telas, casos ainda inéditos surgiram durante o velório de Nelson Pereira dos Santos, entre coroas de flores e os mais fieis amigos, que não são poucos, no Petit Trianon da Academia Brasileira de Letras (ABL) ontem. Quem conta é Luiz Carlos Barreto: “Quando fui para a Bahia co-produzir e dirigir a fotografia nas filmagens de “Vidas secas”, em 1959/60, caiu um temporal e ficou tudo molhado, verdejante. Para aproveitar o pessoal e os equipamentos, Nelson parou tudo, se inspirou num livro baiano e filmou “Mandacaru vermelho”, do qual foi protagonista, um ator excepcional que lembrava o Marlon Brando jovem”, recorda um Barreto emocionado, com sua inseparável Lucy Barreto.
Foi de Glauber Rocha, por sinal, a sugestão de atribuir a Barreto a direção de fotografia de “Vidas secas”, que até então só tinha experiência com as imagens estáticas do jornalismo. “Não queria trabalhar com luz ou filtro, Nelson topou tudo, ele tinha disponibilidade a ideias loucas. Nunca foi encantado com experimentações, não era moderno, e sim contemporâneio. Para ele, o mais importante sempre foi o conteúdo”, relata o cineasta, que também revela o passado de jornalista de Nelson Pereira dos Santos. “Ele foi copydesk do Jornal do Brasil e do Diário Carioca. O jornalismo foi importante para Nelson na depuração da imagem”, acrescenta.
Longo preto de malha e colar de pérolas brancas, Ivelise Ferreira, uma comovida viúva, recepcionava os amigos, muitas vezes sem conter as lágrimas. Os dois se casaram em 1999, após a morte da mãe dos três filhos de Santos, a antropóloga Laurita Sant’Anna dos Santos. O casal se conheceu em 1991, quando Idelise foi para o Pólo de Cinema de Brasília, já iniciada em cinema pela Universidade de Brasília. Ganharam mais intimidade quando ela foi fazer pré-produção e figurinos de “A terceira margem do rio”. Ela aponta como o auge do fim da vida do cineasta o filme “A música segundo Tom Jobim”, de 2013. “O filme correu o mundo inteiro, viajamos muito. Houve uma bela homenagem em Cannes, com direito a tapete vermelho”, recorda ela.
Depois disso, o desejo de Nelson era fazer um filme sobre Pedro II. “Ele começou a fazer o filme, mas veio muito cansaço físico. No fim do ano teve início uma dor na coluna, que o deixou muito isolado, dentro de casa. Estava bem de saúde, mas, na última internação, no Hospital Samaritano, foi diagnosticado um câncer fulminante do fígado, o início do fim”, conta, olhos marejados. As pessoas formavam rodas em variados ambientes da ABL. Do lado de fora, no hall de entrada, na sala onde estava o corpo, na varanda externa e na Sala do Fundador, onde uma televisão exibia trechos dos filmes do cineasta, de momentos de sua vida e da posse - iniciativa do amigo Luis Carlos Barreto - como primeiro cineasta membro da ABL, desde julho de 2006.
O diretor de “Vidas secas” e “Rio 40 graus”, segundo Marco Luccesi, presidente da ABL, estava sob uma dupla proteção. “Há uma simbologia muito forte junto ao corpo que está ali. De Castro Alves, que também ocupou a cadeira 7, e de São Jorge, santo do dia do sepultamento. São libertários que se unem. Nelson criou uma estética que denuncia de forma intensa o Brasil que colocou diante de nossos olhos. Muita saudade”, resumiu. Mestre dos mestres Entre o desfile de grandes cineastas e escritores, um discreto Waltinho Moreira Salles, de jeans preto e camiseta azul escura, definia: “Ele era o mestre dos mestres, uma bússola do cinema moderno. Ajudou a projetar um país mais amplo, livre e independente, diverso do que vivemos hoje. Apontou um Norte através de sua obra, sempre preocupado com as questões de nossa identidade, quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
Nos 30 anos em que o conheci, nunca assisti a um ato que não fosse essencialmente coletivo, generoso e bem-humorado. Sabia melhor que qualquer um que o cinema gera memória e fala de um possível porvir”. O cineasta Miguel Farias atribuiu a Nelson seu desejo de fazer cinema, depois de assistir “Vidas secas”: “Ele foi um guru. Passamos a dividir um escritório em determinada época e moramos juntos durante um período de trabalho comum em Paris. Foi um mestre para todo mundo”, sintetizou Farias. Tizuca Yamasaki botou o pé no cinema, como assistente de produção, cenógrafa e de tudo um pouco, nas filmagens de “O amuleto de Ogum”, de 1972. “Um dia Nelson me disse que precisava ir a Brasília e me encarregou de dirigir as filmagens daquela data. Fiquei sem voz, era uma jovem de apenas 23 anos. Claro que o fotógrafo Zé Tiroteio não fazia nada do que eu dizia , mas dei um jeito. Anos depois fui falar com ele, como fazia aquele tipo de coisa. E ele respondeu que era uma prática habitual, na base do ‘se vira’. Alguns aceitavam, outros não.
Era uma demonstração de confiança, uma grande lição para mim”. Segundo o cantor e compositor Jards Macalé, que foi convidado pelo cineasta a atuar e a assinar as trilhas dos longas “O amuleto de Ogum” (1974) e “Tenda dos milagres” (1977), Nelson se tornou um grande amigo: “Ele me fez um artista melhor. “Aprendi muito com ele, que me fez ser ideologicamente independente. Se contar tudo o que fizemos, vamos em cana”, brincou descontraído, com seu característico humor.
Outro que se inspirou em Nelson para fazer cinema foi Sérgio Santeiro, que depois conviveu com o mestre na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. “Tinha uns 14 anos quando vi ‘Rio 40 graus’. Fiquei impressionadíssimo. Na saída, como no filme, corri para pegar o bonde que passava na Nossa Senhora de Copacabana e felizmente não caí”, diverte-se. No convívio na universidade, lembra que jamais viu Nelson pegar num giz. “Em suas aulas, ele botava todo mundo para filmar”, conclui. A despedida na ABL terminou com a cerimônia comandada pelo monsenhor Sérgio Couto Costa, do Outeiro da Glória. Em seguida, Nelson foi enterrado no mausoléu da ABL, no Cemitério São João Batista.
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