Se acolhemos só quem é como nós…
“Ouvistes o que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos de vosso Pai celeste, porque Ele faz nascer o sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é vosso Pai celeste” (Mt 5, 43-48).
Tenho conhecimento de que tramitam, na Câmara de Vereadores de Caruaru, projetos de lei para constituição de Conselhos que visam a promover espaço de reflexão e discussão em busca de garantir o exercício de direitos de cidadania a “minorias políticas”: promoção de políticas públicas para a juventude, promoção de igualdade étnico-racial, e política para a população LGBTI.
Sinto-me no dever pastoral de dirigir-me, fraternalmente, aos colegas líderes religiosos, particularmente evangélicos, neste Município, no sentido de, em conjunto, refletirmos sobre qual tem sido e deve ser nosso papel de crentes e formadores de opinião em nossas comunidades. Acolher os projetos em tramitação é especial ocasião de testemunhar a atitude típica de Jesus de posicionar-se na defesa dos direitos de cidadania dessas categorias que, ao longo da história, têm sido negligenciadas.
O Evangelho segundo Mateus abre o ministério de Jesus com o famoso Sermão do Monte, começado pelas bem conhecidas Bem-Aventuranças. Ora, sabemos que o Sermão do Monte (cf. Mt cap. 5 a 7) é a “carta magna” da vida cristã. Jesus fala das atitudes e comportamentos que devem caracterizar a pessoa que pretende segui-Lo e assim ser fiel a Deus.
Insiste em se referir a Deus como Pai e radicaliza o princípio do amor ao falar da relação com quem nos é inimigo ou inimiga. Ao salientar a paternidade de Deus, não tem como horizonte apenas a comunidade de seus discípulos e discípulas, mas a relação de Deus com toda a Sua criação; dá como exemplo a bênção da chuva e do sol (cf. Gn 1) e estabelece um mandamento de amor ao próximo que se deve estender mesmo a quem procede com inimizade ou hostilidade para conosco.
Ou seja, compreende a humanidade toda como uma só família, pois o Pai é um só. A compreensão antiga do mandamento, que está em Lv 19,18, ficou sendo a de amar somente quem era “próximo” (de sangue), ou seja, quem pertencia à mesma tribo ou nação, quem era “semelhante” por ser do mesmo povo ou condição. É bom observar que a frase “odiarás o teu inimigo” não está na formulação bíblica, mas era interpretação dada por escribas.
Jesus, ao contrário, apresenta como modelo a própria paternidade de Deus que beneficia e se aproxima, mediante o dom da vida, de todas as pessoas sem distinção. Traz como bênçãos os dois elementos básicos que tornam possível viver, a água e o calor e a luz do sol. É importante notar a radicalidade contida no exemplo trazido por Jesus.
Primeiro, deixa claro que nossas relações de bondade ou beneficência não podem ser apenas com as pessoas amigas, próximas ou semelhantes a nós. Em seguida, declara que não podemos excluir de nossa bondade nem mesmo quem se comporta como perseguidor e inimigo.
O pressuposto básico é que a paternidade única de Deus nos reúne, com todas as diferenças e dificuldades, numa única família humana. Jesus é tão radical que equipara nosso comportamento de exclusão, de quem não é como nós, ao modo de proceder de pessoas que, em sua época, eram consideradas particularmente pecadoras, distantes de Deus, os cobradores de impostos, chamados de “publicanos”, execrados pelo povo por serem colaboradores dos opressores romanos.
Ou seja, acolher e favorecer apenas quem é “próximo”, “quem nos ama” e nos retribui, nos faz semelhantes, não ao Pai, mas aos “publicanos”, traidores do povo. E qual é o elo dessa tão ampla e radical comunhão humana? É a própria atitude revelada pelo Pai universal: concede os dons da vida a justos e injustos, a quem Lhe é fiel e a quem não Lhe é fiel.
A vida não é prêmio de nossas “boas obras”, do que julgamos bons comportamentos; a vida é puro dom do Pai. Em duas parábolas do evangelho de Lucas, Jesus explicita ainda mais claramente seu pensamento: a parábola do Bom Samaritano, que se aproxima, ajuda e acolhe o homem que sabe ser estrangeiro e inimigo de seu povo, ou seja, alguém estranho e diferente (cf. Lc 10, 29-37); e a parábola do filho rebelde que se afasta de casa e vai viver em “terra estranha e longínqua”, bem diferente do jeito de seu próprio povo. E o pai não o castiga por isso, antes, o recebe de volta, com alegria e festa (cf. Lc 15, 11-32).
Finalmente, o exemplo que nos é proposto é o do próprio Pai divino, que não conhece fronteiras: “ (…) para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste (…). Portanto, sede vós perfeitos, como perfeito é vosso Pai celeste” (vs. 45.48). Uma dificuldade que a Igreja cristã ainda experimenta é conviver com quem é diferente dela. Por trás dessa dificuldade tem todos os séculos durante os quais a Igreja foi poder político em regime de monarquia absoluta, pensemos nos tempos da Idade Média.
Era a Igreja quem determinava quais os comportamentos das pessoas e todas lhe deviam obediência. Nessa época da chamada Cristandade, quando a sociedade era toda cristã, a Igreja era parte do Estado, do aparelho político de poder. Nem a Reforma protestante foi capaz de quebrar esse parâmetro, pois permaneceu ligada ao poder político. Hoje, a sociedade mudou radicalmente, a Igreja tem de sentir-se parte da ‘sociedade civil’ e acostumar-se a viver numa cultura pluralista e não pretender impor sua visão das coisas, como a única correta, por isso a única legítima.
Seu trabalho, por outro lado, tem de ser estritamente de “evangelização”, isto é, por gestos e palavras, anunciar a maravilhosa e transformadora mensagem de Jesus e, por seu testemunho de amor e comunhão, tornar-se espaço atraente e revelador do amor universal do Pai, e por isso defensora de categorias sociais pobres, fragilizadas, humilhadas, marginalizadas, ameaçadas e excluídas, como, em nossa sociedade, são tratadas as pessoas negras, homossexuais e a nossa juventude.
Sem dúvida, se testemunharmos a alegria de Deus e Sua bondade para com todas as pessoas, mesmo as que pensam e se comportam de maneira diferente de nós, estaremos muito mais perto do comportamento de Jesus, Ele que escandalizou os poderosos de seu tempo, pela relação de proximidade que estabeleceu com as mulheres, que eram desprezadas e inferiorizadas, acolheu-as como discípulas, em Sua intimidade, e chegou a defender a adúltera; com quem era tido como pecador, como os cobradores de impostos (publicanos) e as prostitutas; com as pessoas desprezadas pela sociedade, e consideradas “impuras”, indignas de conviver com as demais, como enfermos, paralíticos, leprosos, loucos; valorizou as crianças que não mereciam nenhuma atenção; teve a seu redor pastores e pescadores, considerados “impuros” pela própria profissão que exerciam…
Sua capacidade de incluir foi tão ampla e radical que se tornou tremendamente incômodo ao sistema (econômico, social, político e religioso) de Sua época. Ou nos esquecemos de que Jesus não morreu na cama como um “bom velhinho”, mas, ainda jovem, foi preso, julgado, torturado e morto no pior de todos os suplícios, justamente o de escravos, bandidos e revoltosos? Hoje diríamos que foi sentenciado por sua proposta divina da paternidade de Deus, de incluir todas as pessoas e testemunhar a legitimidade da sua luta por “direitos humanos”, em Sua linguagem, “direitos divinos”, por isso, irrenunciáveis…
Não é por acaso que, quase no final do texto, o Evangelho segundo Mateus venha dizer que as pessoas são julgadas, isto é, sua qualidade humana se revela pela capacidade de acolher e incluir quem, na sociedade, se acha marginalizado e excluído, diríamos hoje, quem se acha privado injustamente do direito humano a ser tratado com dignidade (cf. Mt 25, 31-46).
*Sebastião Armando Gameleira Soares é Bispo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
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