22/07/19

Cidadania e Fé - Como o cristianismo humaniza a política: um apanhado do pensamento de Jürgen Maneman - por João Alfredo Filho

O cristianismo pode trazer sua contribuição na “esfera da sociedade civil”, sendo certo que um ambiente genuinamente democrático não pode ser hostil à religião.
Há quem defenda o enclausuramento do fenômeno religioso ao âmbito estritamente privado e a amputação da atuação social de organismos religiosos, atuação esta considerada por alguns uma ingerência indevida de visões fundamentalistas e antidemocráticas na vida pública.

Jürgen Manemann, teólogo e filósofo alemão, diretor do Instituto de Pesquisa e Filosofia de Hannover, no artigo intitulado A permanência do teológico na política: chances e riscos para o cristianismo na atual crise da democracia, publicado no Brasil pelo periódico Concilium – Revista Internacional de Teologia, n. 311, escancara o equívoco daqueles que assim entendem.

A religião (no caso, a cristã) tem seu lugar no mundo pós-moderno e sua contribuição para o fortalecimento da democracia é única, pois constitui um meio de manifestações públicas de anseios humanos. A tarefa política básica da religião é o incentivo à manifestação de ideias e sentimentos, mantendo-se coerente com a “dimensão pática do monoteísmo, que visa que seja reconhecido o sofrimento alheio”, e trazendo os indivíduos ao centro do palco social, resgatando-lhes “sua singularidade e individualidade”.

A religião poderia “liberar na sociedade energias comunicativas, e, com isto, estaria contribuindo para estabilizar o projeto democrático, porque a existência das modernas instituições democráticas depende das energias comunicativas e narrativos-memorativas que nela investem os cidadãos, ao se reconhecerem como iguais”.

Os “processos da economia e da técnica” são ameaças a essas energias comunicativas. A própria política igualmente corre o risco de tornar-se “mero negócio ou em técnica pura e simples”, sendo “bom que ela não se fechasse às recordações e narrativas do cristianismo, já que nelas está presente o potencial capaz de libertá-las das algemas da economia e da tecnocracia”.

A política deve se deixar influenciar e nunca perder de vista a narrativa cristã, caso pretenda não sucumbir às forças meramente tecnológicas e econômicas. Sem um tipo de “resistência moral e religiosa que surge da memória do sofrimento acumulado ao longo da história”, a política perde seu referencial libertador.

Entretanto, esclarece o autor que a interação entre política e moral não implica uma “recaída na canonização política de um determinado sistema moral”, nem significa “um choque totalitário de práxis política e ética”. O contato entre política e religião “exige a mobilização das forças espirituais e morais por meio de uma radical democratização da infraestrutura da sociedade, um reerguimento, a partir de baixo, da liberdade e da eficaz responsabilidade. Assim, se estaria resistindo à decomposição da fantasia política e da ação política em uma questão de puro planejamento. Pois só a autonomia da dimensão política é que torna o futuro humano possível”.

O cristianismo pode trazer sua contribuição na “esfera da sociedade civil”, sendo certo que um ambiente genuinamente democrático não pode ser hostil à religião. O franqueamento das inserções do discurso religioso nas mais variadas questões de interesse público permite identificar uma sociedade como pluralista e democrática.

Das discussões advindas da interação entre o religioso e o político “surgem novas perspectivas morais, que forçam a admitir pontos de vista diferentes. Mesmo quando, ou precisamente quando, não se chega a um consenso, e para se decidir tem-se que recorrer ao direito, é que as
sociedades em que tais discursos são possíveis tornam-se portadoras de uma maneira ampla de pensar”.

A secularização num contexto de sociedade aberta, portanto democrática, representou um ganho para a religião a partir do momento em que foi percebida (ou gerada) a necessidade de recuperação de sua relevância na esfera pública.
Manemann defende que política e religião encontram-se “em uma inseparável interconexão. Pela religião, a política é preservada de ficar restrita à manutenção da ordem e de viver na ilusão da pura imanência. A religião lembra à política a necessidade de desincorporação do poder”.

A teologia, fundada na memória da morte de Jesus e sua função redentora, “advoga em favor de uma consciência política, de uma ação política a partir das histórias do sofrimento dos seres humanos. Com isto, ela consegue romper os perigos de uma sociedade baseada em uma diferenciação funcional e que não consegue considerar o todo”.

Um aspecto elementar da religião monoteísta merece registro: a noção de “um Deus único, que cria a base para se entender a realidade como unidade”. À luz dessa premissa fundamental, a humanidade estaria melhor preparada para refrear os conflitos entre povos e culturas. Sendo a origem de todos única e transcendente ao homem, impõe-se a desconstrução de “exigências absolutas que levam a uma política que negue a outros o direito de viver e que culminem na sua destruição”.

Percebe-se que o monoteísmo cristão é perfeitamente compatível com a democracia, pois ambos reconhecem a “singularidade do outro”.

A democracia significa a viabilização da “convivência pública com a incerteza”, e a religião pode garantir a abertura para questionamentos (marca das sociedades democráticas) na medida em que leva a política a não se limitar “à conservação da ordem dada de antemão” e nem viver “na ilusão de uma pura imanência”. Como a religião “não coloca a sociedade em uma fôrma”, aparece como elemento simbólico que confronta a sociedade “com algo que não é produzido por ela própria” (um “outro mundo”), condição básica para que a sociedade reflita sobre si mesma. Uma autorreflexividade da sociedade apenas é possível com essa confrontação promovida pela religião.

Por fim, defende Jürgen Manemann a “permanência do elemento teológico-político na democracia moderna”, fundado na “solidariedade bíblica”, que, por sua vez, escora-se na realidade de um “Deus que de si mesmo diz que ele é o fim que salva” e é defensor dos “ameaçados de sucumbir”. A partir daí, surge um humanismo “perfeitamente de acordo com o etos da democracia, como o mostra um olhar para os direitos humanos – o princípio gerador da democracia”.


*João Alfredo Beltrão Vieira de Melo Filho é graduado em Bacharelado em Direito pela Associação de Ensino Superior de Olinda (1999) e mestrado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010). Atualmente é professor assistente da Associação Caruaruense de Ensino Superior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil.



Um comentário:

Kézia Lyra disse...

Parabéns pelo excelente texto, querido! Deus o abençoe!