15/07/19

Cidadania e Fé - ENTRE A LÓGICA SECULAR E A HERMENÊUTICA RELIGIOSA. por Kézia Lyra*


O exercício da jurisdição é concebido como parcela integrante do poder estatal e se propõe a dizer o direito ao caso concreto. Ocorre que, diante da violência – muitas vezes, meramente simbólica, como ensina Pierre Bourdieu – e da perseguição contumaz que se impinge ao fenômeno religioso, especialmente nos últimos tempos, muito se questiona acerca dos mecanismos de interpretação utilizados pelos juízes para a resolução das inúmeras demandas que envolvem a temática da fé e do livre exercício da cidadania. Para exarar-se uma decisão sobre matéria dessa natureza, pressupõe-se a necessidade de compreender o problema e delimitar com precisão o espaço de competência do órgão judicial na análise das múltiplas petições que lhes são formuladas, a fim de que não venha a se imiscuir no âmbito da própria comunidade de fé, ofendendo a laicidade estatal formalmente reconhecida pelo Estado brasileiro.

É inegável que o Brasil - pautado no regime democrático de Direito - reconhece a existência e a importância da religião para toda a sociedade, o que facilmente se constata no ordenamento, como se vê, por exemplo, em relação à adoção dos feriados de dias santos e de datas simbólicas, à concessão das imunidades tributárias quanto aos templos e à renda, à dispensa ou mesmo à exclusão do serviço militar e de outras obrigações a todos impostas por motivo de escusa de consciência, ao exercício da religião por pessoas encarceradas, ao casamento religioso a que a lei atribui efeito civil, além de muitas outras situações. E, como não poderia deixar de ser, naturalmente, diante das situações práticas da vida cotidiana, incluídas as que ocorrem dentro dos agrupamentos religiosos ou entre seus adeptos, as relações se estabelecem e os problemas que delas advém precisam ser tratados e solucionados, inclusive, algumas vezes, com a interferência de um magistrado. Nessa circunstância, o poder estatal e a autonomia da religião impõem ao Direito uma aplicabilidade diversa e delicada.

Essa dicotomia deve levar o julgador a, de antemão, reconhecer a natureza, o propósito e a própria história da religião e de suas instituições, já que, diferentemente das organizações laicas, as comunidades de fé têm histórias, crenças, tradições e formas de organização e governança internas que são absolutamente distintas das vivenciadas pelos demais organismos sociais e não podem ser reguladas senão por elas mesmas. É inevitável aceder que a religião é regida por regras próprias, pautadas em características exclusivas, atemporais e irrevogáveis, porque incluem entre seus pilares de sustentação a relevância que destina às relações humanas, aos sentidos da vida, da morte, do pecado e aos paradigmas inafastáveis da transcendência e da reconciliação com Deus.

Para o que crê, a religião compõe o centro irradiador das ações e comportamentos humanos e, portanto, mais que a liberdade religiosa, o Estado deve reconhecer o direito às perspectivas delineadas pela religião e das quais seus aderentes não podem ser desvencilhados, porque são por elas conduzidos, dando-lhes significados e molduras que envolvem a própria vida individual e a identidade coletiva do homem. Não se trata de mero respeito a uma crença, mas a todo o contexto que envolve o indivíduo que a ela está atrelado.

Assim sendo, a interpretação normativa dos valores da religião não pode ser confundida ou substituída pela lógica hermenêutica secular. Como esclarece Davide Argiolas, a religião transcende a lei, pois continua a existir mesmo na ausência do Estado. E, diante de uma condição tão sui generis, o reconhecimento e o equilíbrio entre valores religiosos e seculares e entre a autonomia religiosa e a postura agregativa estatal em demandas dessa ordem é essencial para não permitir que a intromissão do Estado-Juiz, pautado numa lógica estranha ao axioma religioso, acabe criando um campo fértil para a distorção e o arrefecimento do fenômeno religioso, o que comprometeria gravemente a laicidade estatal e as indubitáveis contribuições sociais que somente a religião, impulsionada por seu conjunto valorativo, pode propiciar.

*Kézia Milka Lyra de Oliveira, advogada e professora da ASCES/UNITA, mestranda em Direito e Pós graduanda internacional em Direitos fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/RS), em cooperação com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), com o Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra e com o Oxford Centre for Christianity and Culture/Regent's Park College da University of Oxford.


10 comentários:

Unknown disse...

Mais um excelente texto! Esclarece uma temática sensível - o exercício da religião e da jurisdição - de forma técnica e clara. Parabéns professora e amiga Kézia!

Kézia Lyra disse...

Obrigada!

Unknown disse...

TEXTO MARAVILHOSO, PARABÉNS.

Unknown disse...

Eu amei esse texto. Parabéns!

Kézia Lyra disse...

Obrigada!

Kézia Lyra disse...

Muito obrigada!

Sóstenes Gondim disse...

ótima reflexão para o entendimento de valores que demandam interpretação além do que o ponto vista .

Kézia Lyra disse...

Obrigada, Sóstenes! A ideia é contribuir!

Unknown disse...

Késia, parabéns, estamos diante de um texto de excelente densidade, tanto jurídica como religiosa, pois é uma situação bastante delicada o alcançe de uma compreensão jurisdicional adequada para determinados conflitos onde as diretrizes da crença podem comprometer a solução argumentativa puramente dogmática, notadamente quando o magistrado se esquece ou se omite diante desta realidade bem pontuada pela sua sensibilidade acadêmica. Um grande abraço.

Kézia Lyra disse...

Muito obrigada pelas observações!