07/09/18

CRIANÇA por Agildo Galdino


É simplesmente como muitas outras histórias, mas essa é a de “criança” com lembranças que não se esgotam, e como crianças é melhor que não as acordemos porque, quando despertam, é difícil fazê-las adormecer. Vejam meu filho, o Pedro Henrique, com pouco mais de 18 meses. Ah, quando acorda à noite só sua mãe, Aline Moema, é que sabe que sufoco passa para fazê-lo novamente dormir. Já Vitoria, sua irmãzinha, durante a noite é mais tranquila, dorme a noite toda, no entanto, ao longo do dia, cobra com juros e correção monetária as horas que passa quieta, dormindo. Mas hoje fui eu que acordei pela noite com as lembranças de criança.

Posso dizer que tudo começou mesmo em uma daquelas noites de agosto de Caruaru, pelos idos de 1956/57. O vidro da janela do meu quarto chuviscado, a noite fria de doer. Mas, no aconchego da minha cama, meu pai a cantar e tocar violão para que eu pudesse adormecer. É, ele não usava a técnica de “contar carneirinhos” mas sim solfejar e solar baixinho ao violão uma canção, daquelas de sua época. Esse hábito tinha ele também quando eu estava doente. Sentava-se na beirada da cama e haja cantar. Era ele um seresteiro daqueles de antigamente, de uma voz belíssima e um timbre de voz parecido com Augusto Calheiros. Ainda bem que, de lembrança, guardo até hoje sua voz em um disco, com várias músicas do cancioneiro brasileiro por ele interpretadas.
Naquela noite adormeci como de costume embalado pela sonoridade das notas musicais repletas de amor. Mas lá fora um gemido atormentava, uma espécie de choro que era de partir a alma e incomodar o silêncio da noite fria, vindo de trás de nossa casa.

Nos fundos de nossa casa existia então um terreno baldio, ou seja de mato verde, inclusive até bredo se colhia ali na época da semana santa para comê-lo com peixe e feijão preparados ao coco. Até hoje permanece tal costume para o menu na Semana Santa de muitas famílias. Era assim a casa de meus pais na minha infância.

Ah, meu pai, já por volta de meia noite pega uma lanterna, cobre-se com uma capa de chuva e chapéu de abas largas na cabeça e vai até o terreno baldio, guiado por aquele som triste. Ele tinha paixão por crianças e animais. E eis o que ele encontra: um filhote de ovino, um cordeiro com o seu corpo coberto com muito pouca lã ainda (apenas uma fina camada). Lembremo-nos aqui, o cordeiro da história bíblica de Abraão e Isaac (Gênesis 22.1-18), numa referência ao fato de que Jesus é o sacrifício perfeito e definitivo pelo pecado e que expressa a grande misericórdia e o grande amor d’Ele por nós! (João 1:29 e 1:36).

Mas voltando ao carneirinho, estava ele ali no mato, trêmulo e encolhido, praticamente não esposou reação ao ser colocado no colo e levado para casa. Minha mãe esperava a volta de meu pai, já providenciando de imediato leite em
uma mamadeira e alimentando o bichinho. Pela manhã, ao nos levantarmos, já foram logo me mostrando aquele carneirinho. Ah, minha infância, meu primeiro amor logo o batizei de “Criança”. Nessa mesma manhã, meu pai fez algumas diligências no intuito de encontrar o dono, agora de Criança, mas o esforço foi inútil e assim o adotamos.

O tempo passou e Criança tornou-se muito lindo e forte, com a lã bem cuidada e toda branquinha que parecia algodão bem limpo. Muito fofinho, tinha apenas uma marca em forma de meia lua na pata traseira direita (coxa). Tornamo-nos amigos inseparáveis, toda manhã, cedinho, ao se abrir a porta da cozinha, logo ele corria para me acordar e começávamos a brincar, corria do quintal até a porta da frente da casa. Passeávamos sempre aos domingos indo à casa dos meus avós maternos na rua dos Guararapes e lá andávamos, subindo e descendo a rua pela calçada. Meus avós na varanda a nos vigiar eu, meus primos Marcos Martins e Walter Levita e Criança, na calçada.

Ah, como éramos felizes! Mas, reconheço, não éramos crianças tão espertas como as de hoje, antenadas com o mundo lá fora, com os eletrônicos e a internet dominando as suas vidas, recebendo informações em tempo real. Hoje, são extremamente argumentativas, quase não brincam de outro modo e na rua então nem pensar. Quando se fala em lazer é correr para os parques e espaços criados nos shoppings. Ah, que saudade das praças onde nos bancos os casais sentados a namorarem, enquanto a criançada brincava brincadeiras ingênuas.

De certa feita, subindo e descendo a rua com Criança que tinha a arrodear seu pescoço uma coleira de couro com seu nome gravado a ferro quente, confeccionada por meu pai que era também um artesão do couro. Quando me dei conta ao lado dele estava uma senhora já segurando a coleira. Para meu espanto, ela dizia: – Então te encontrei. O céu pareceu-me escurecer naquele instante. – Então te encontrei. Lembro bem, logo gritei bem alto: – Solta ele sua bruxa.

Minha mãe logo se aproxima com aquele grito e de imediato se dirige àquela mulher de fisionomia marcante. – Mas o que está acontecendo. – É meu, é meu. – Meu o quê? – O carneiro é meu. Essa marca na coxa dele é inconfundível. E não soltava a coleira. Foi então que minha mãe lhe disse: –Calma, minha senhora, vou chamar meu marido para resolvermos.
E então, lá veio meu pai.

Para aquela senhora parecia ser mais um animal que criava para venda. Meu pai pediu então que ela pusesse um preço no carneirinho, afinal, Criança já estava com uns seis meses, bem cuidado e bonito, mas ela, irredutível, não queria um acordo. Ah, quanta falta de sensibilidade, na verdade ela queria a todo custo o animal de volta, estipulando um valor exorbitante para que não pudéssemos ficar com Criança. Diante da intolerável proposta e da irredutibilidade de um acordo bom para as duas parte, meu pai não pôde aceitar aquele capricho da senhora e assim não houve um final feliz.

Vizinhos e a criançada da rua se revoltaram. Queriam até apelar para a justiça, mas enfim, o sentimento do correto e do ético prevaleceu. Meu pai disse: – Ô gente, ela tem o direito de levá-lo, mas poderia ao menos nos conceder a chance de pagar um valor justo pelo animal, mas não quis. O que fazer? Assim, vimos com um penar imenso aquela senhora pegar Criança e começar a andar com ele. Deixamos ela levar a coleira que meu pai providenciara. Afinal, era mesmo de Criança. Antes de virar a esquina da rua, Criança olhou para trás, já a uma distância de uns cem metros que nos separava, e deu um berro estridente. Era um adeus com a dor de quem vai e a de quem fica. Nunca mais vi Criança. Agora, penso comigo, fosse hoje, eu lutaria pelo direito de ficar com Criança.

Agildo Galdino Ferreira
Membro da Academia Caruaruense
de Cultura, Ciências e Letras

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