Dentre as pretensões do Estado e da Igreja é imperioso reconhecer que promover o bem comum é finalidade inerente às duas esferas e, por esse motivo, num sistema em que o interesse social seja prevalecente, é corriqueira sua atuação de forma paralela ou mesmo conjunta, o que é perfeitamente consentâneo com a Constituição Federal brasileira, em cujo art. 19, I claramente se evidencia o reconhecimento e a importância da religião na construção dos interesses nacionais. Senão, vejamos:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Como se nota, nosso modelo de laicidade evidencia que o legislador constituinte legislou no sentido de que o Estado deva respeitar a identidade religiosa do povo brasileiro, assim como o sentimento de pertencimento histórico a uma comunidade que admite que os valores da religião também são fundamentais para o equilíbrio social e para a efetivação da própria dignidade humana.
Recentemente, algumas narrativas – supostamente pautadas num argumento de tolerância – vem camuflando o sorrateiro e equivocado intuito de, na verdade, desconstruir a concepção laica de estado brasileiro e impor um laicismo (ou laicidade absoluta) que conduza o Estado a forçosamente adentrar no interior das religiões para delimitar as fronteiras do exercício do direito à legítima liberdade religiosa, sugerindo-se sua exclusão dos espaços públicos e restringindo sua abrangência ao âmbito interno de cada indivíduo, o que representaria gravíssima violação aos direitos humanos, ferindo-se de morte a laicidade estatal.
É urgente compreender que estado laico não é sinônimo de estado ateu, muito menos de estado perseguidor. Brandão Cavalcanti1 assevera que, “em matéria religiosa o Estado deve ser neutro. Nada justifica sua intervenção, nem no sentido da religião oficial, nem da laicidade absoluta, porque são ambas formas extremas, ambas são processos de intervenção. O Estado leigo não é o Estado anticlerical, mas o que respeita a crença e a religiosidade dos que nele vivem”.
Conquanto não sejam atuais, os debates acerca dos pontos de intersecção ou de uma suposta repulsa entre política e religião voltam à cena frequentemente nos cenários político e jurídico brasileiros. A separação entre Estado e Igreja – verificada constitucionalmente desde o fim da monarquia (confessional católica) e a partir do advento da República (plurirreligiosa) – evidencia a escolha pela laicidade harmônica e cooperativa no Brasil e norteia a composição de um sistema jurídico sedimentado no império da racionalidade normativa – herança da revolução burguesa do Século XVIII – mas também no Direito romano-germânico (Civil Law) que, em muitos aspectos, encampa os genes, valores, conceitos e práticas comuns ao Cristianismo, que foi amplamente disseminado ao longo dos séculos nessas terras tupiniquins2.
Ora, compreende-se que a lei ainda é a fonte primária e soberana do Direito no Brasil, pois apenas subsidiariamente e na ausência da norma, pode-se admitir a utilização de mecanismos de integração das eventuais lacunas do sistema, devendo-se observar, por obviedade, os limites que cada ordenamento lhes impõe. Desse modo, confere-se ao legislativo o poder de decidir acerca dos destinos políticos do país. É claro que o Direito não é um produto estanque, já que ele sofre mutações no tempo e no espaço e tem seu conteúdo preenchido, visto e revisto a partir da dinâmica social e dos conflitos que dela decorrem, devendo o Estado, por meio de suas normas jurídicas, propiciar aos cidadãos os instrumentos necessários ao atendimento do bem comum de forma a respeitar a dignidade da pessoa humana que, aliás, é um dos fundamentos do Estado brasileiro, consoante se depreende do art. 1º, III, da CF/88. Vejamos:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana.
É também imperioso perceber que a dogmática jurídica e a ciência do Direito como um todo não devem ser frutos de concepções aleatórias ou meramente imperativas da vontade isolada, ocasional ou súbita dos legisladores, mas, na verdade, fundamentam-se nos valores que marcam a sociedade e inspiram o sistema jurídico que a regerá. Dentre esses valores, fatalmente há aqueles que são inafastáveis, posto que entranhados na essência humana, que os reconhece e os tem como referencial axiológico e identitário. O suposto ideal democrático, portanto, não pode ser indiferente aos aspectos históricos que influenciam e marcam a formação da nação brasileira, conferindo às pessoas o sólido sentimento de pertencimento e identificação com um Estado que reconheça e respeite os valores morais e éticos que foram disseminados especialmente pelas práticas religiosas aqui regularmente vivenciadas ao longo da história. Não se trata de negar o respeito à pluralidade religiosa, mas sim de reconhecer que essa diversificação não pode desconstruir o legado que intrinsecamente foi incorporado ao povo brasileiro e que influenciou o próprio constitucionalismo ocidental.
1. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. A Constituição Federal Comentada, 3ª. ed., J. Konfino – Editor, 1959, p. 101
2 Santos Jr., Aloísio Cristovam dos. Liberdade Religiosa e Laicidade na História do Direito Brasileiro, p. 57. On line
*Kézia Milka Lyra de Oliveira, advogada e professora da ASCES/UNITA, mestranda em Direito e Pós graduanda internacional em Direitos fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/RS), em cooperação com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), com o Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra e com o Oxford Centre for Christianity and Culture/Regent's Park College da University of Oxford.


16 comentários:
Magnífico!
Excelente texto!
Extraórdináro!
Lisonjeada!
Muito obrigada!
Grata por sua gentileza!
Que texto ... Parabéns, que o Senhor continue te dando sabedoria e conhecimento 😘
Amei o texto, é reflexivo, atual e bem pertinente esse tema. O respeito a dignidade humana era pra ser uma coriqueira forma de respeita os valores tanto éticos quanto os morais. Parabéns querida.
Amém! Muito grata por suas palavras!
Muitíssimo obrigada!
Parabéns ! Mais uma vez , um riquissimo texto .
Obrigada, querido!
Mais um excelente texto! 🙂👏
Muito obrigada!
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