29/07/19

Cidadania e Fé - LIBERDADE RELIGIOSA: encontros e desencontros em um estado laico cooperativo por Kézia Lyra


Dentre as pretensões do Estado e da Igreja é imperioso reconhecer que promover o bem comum é finalidade inerente às duas esferas e, por esse motivo, num sistema em que o interesse social seja prevalecente, é corriqueira sua atuação de forma paralela ou mesmo conjunta, o que é perfeitamente consentâneo com a Constituição Federal brasileira, em cujo art. 19, I claramente se evidencia o reconhecimento e a importância da religião na construção dos interesses nacionais. Senão, vejamos:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. 

Como se nota, nosso modelo de laicidade evidencia que o legislador constituinte legislou no sentido de que o Estado deva respeitar a identidade religiosa do povo brasileiro, assim como o sentimento de pertencimento histórico a uma comunidade que admite que os valores da religião também são fundamentais para o equilíbrio social e para a efetivação da própria dignidade humana.

Recentemente, algumas narrativas – supostamente pautadas num argumento de tolerância – vem camuflando o sorrateiro e equivocado intuito de, na verdade, desconstruir a concepção laica de estado brasileiro e impor um laicismo (ou laicidade absoluta) que conduza o Estado a forçosamente adentrar no interior das religiões para delimitar as fronteiras do exercício do direito à legítima liberdade religiosa, sugerindo-se sua exclusão dos espaços públicos e restringindo sua abrangência ao âmbito interno de cada indivíduo, o que representaria gravíssima violação aos direitos humanos, ferindo-se de morte a laicidade estatal.

É urgente compreender que estado laico não é sinônimo de estado ateu, muito menos de estado perseguidor. Brandão Cavalcanti1 assevera que, “em matéria religiosa o Estado deve ser neutro. Nada justifica sua intervenção, nem no sentido da religião oficial, nem da laicidade absoluta, porque são ambas formas extremas, ambas são processos de intervenção. O Estado leigo não é o Estado anticlerical, mas o que respeita a crença e a religiosidade dos que nele vivem”.

Conquanto não sejam atuais, os debates acerca dos pontos de intersecção ou de uma suposta repulsa entre política e religião voltam à cena frequentemente nos cenários político e jurídico brasileiros. A separação entre Estado e Igreja – verificada constitucionalmente desde o fim da monarquia (confessional católica) e a partir do advento da República (plurirreligiosa) – evidencia a escolha pela laicidade harmônica e cooperativa no Brasil e norteia a composição de um sistema jurídico sedimentado no império da racionalidade normativa – herança da revolução burguesa do Século XVIII – mas também no Direito romano-germânico (Civil Law) que, em muitos aspectos, encampa os genes, valores, conceitos e práticas comuns ao Cristianismo, que foi amplamente disseminado ao longo dos séculos nessas terras tupiniquins2.

Ora, compreende-se que a lei ainda é a fonte primária e soberana do Direito no Brasil, pois apenas subsidiariamente e na ausência da norma, pode-se admitir a utilização de mecanismos de integração das eventuais lacunas do sistema, devendo-se observar, por obviedade, os limites que cada ordenamento lhes impõe. Desse modo, confere-se ao legislativo o poder de decidir acerca dos destinos políticos do país. É claro que o Direito não é um produto estanque, já que ele sofre mutações no tempo e no espaço e tem seu conteúdo preenchido, visto e revisto a partir da dinâmica social e dos conflitos que dela decorrem, devendo o Estado, por meio de suas normas jurídicas, propiciar aos cidadãos os instrumentos necessários ao atendimento do bem comum de forma a respeitar a dignidade da pessoa humana que, aliás, é um dos fundamentos do Estado brasileiro, consoante se depreende do art. 1º, III, da CF/88. Vejamos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana.

É também imperioso perceber que a dogmática jurídica e a ciência do Direito como um todo não devem ser frutos de concepções aleatórias ou meramente imperativas da vontade isolada, ocasional ou súbita dos legisladores, mas, na verdade, fundamentam-se nos valores que marcam a sociedade e inspiram o sistema jurídico que a regerá. Dentre esses valores, fatalmente há aqueles que são inafastáveis, posto que entranhados na essência humana, que os reconhece e os tem como referencial axiológico e identitário. O suposto ideal democrático, portanto, não pode ser indiferente aos aspectos históricos que influenciam e marcam a formação da nação brasileira, conferindo às pessoas o sólido sentimento de pertencimento e identificação com um Estado que reconheça e respeite os valores morais e éticos que foram disseminados especialmente pelas práticas religiosas aqui regularmente vivenciadas ao longo da história. Não se trata de negar o respeito à pluralidade religiosa, mas sim de reconhecer que essa diversificação não pode desconstruir o legado que intrinsecamente foi incorporado ao povo brasileiro e que influenciou o próprio constitucionalismo ocidental.

1. CAVALCANTI, Themístocles Brandão. A Constituição Federal Comentada, 3ª. ed., J. Konfino – Editor, 1959, p. 101
2 Santos Jr., Aloísio Cristovam dos. Liberdade Religiosa e Laicidade na História do Direito Brasileiro, p. 57. On line

*Kézia Milka Lyra de Oliveira, advogada e professora da ASCES/UNITA, mestranda em Direito e Pós graduanda internacional em Direitos fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA/RS), em cooperação com a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), com o Ius Gentium Conimbrigae/Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra e com o Oxford Centre for Christianity and Culture/Regent's Park College da University of Oxford.


16 comentários:

Unknown disse...

Magnífico!

Unknown disse...

Excelente texto!

Unknown disse...

Extraórdináro!

Kézia Lyra disse...

Lisonjeada!

Kézia Lyra disse...

Muito obrigada!

Kézia Lyra disse...

Grata por sua gentileza!

Unknown disse...

Que texto ... Parabéns, que o Senhor continue te dando sabedoria e conhecimento 😘

Unknown disse...

Amei o texto, é reflexivo, atual e bem pertinente esse tema. O respeito a dignidade humana era pra ser uma coriqueira forma de respeita os valores tanto éticos quanto os morais. Parabéns querida.

Kézia Lyra disse...

Amém! Muito grata por suas palavras!

Kézia Lyra disse...

Muitíssimo obrigada!

Kézia Lyra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sóstenes Gondim disse...

Parabéns ! Mais uma vez , um riquissimo texto .

Kézia Lyra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Kézia Lyra disse...

Obrigada, querido!

Unknown disse...

Mais um excelente texto! 🙂👏

Kézia Lyra disse...

Muito obrigada!