03/02/20

Cidadania e Fé - Além da polarização política por João Alfredo B. Filho

 
A Palestina do primeiro século era uma das áreas mais agitadas do Império Romano. Revoltas eram constantes e a repressão comandada pelos representantes do poder central eram brutais.
 
Dentre os grupos judeus que lutavam contra o domínio romano, estavam os zelotes. Ganharam esse nome por serem fervorosos nacionalistas e defensores da religião. Eram engajados na luta armada, não temiam a morte e desprezavam os romanos e seus colaboradores. Na grande revolta iniciada em 66 e que culminou com a destruição de Jerusalém em 70, tiveram um papel proeminente, e foi uma fortaleza dos zelotes, Massada, próxima ao mar Morto, o último ponto de resistência judaica. Foram 960 judeus contra o poderio da 10ª Legião, com seus 15.000 homens, entre combatentes e forças auxiliares. A fortaleza sucumbiu em 73, depois de dois anos de cerco. Quando os romanos tomaram Massada, viram apenas cadáveres. Os zelotes sortearam dez homens para matar os outros. Depois escolheram aquele que deveria matar os sobreviventes e, por último, matar-se.[1]
 
Enquanto os zelotes (como também os sicários, originários daqueles) eram a vanguarda da resistência judaica contra o governo de César, um outro grupo aderiu ao domínio estrangeiro – os publicanos.
 
Havia uma classe de publicanos formada por “homens muito ricos, normalmente romanos, que venciam o leilão para adquirir o direito de cobrar os impostos em determinada região. O Império Romano não entregava a cobrança de impostos a oficiais, mas arrendava o direito de cobrança de impostos para quem desse o maior lance para tal. Assim, o arrendatário pagava adiantado uma parte da soma dos impostos que ainda iria colher de determinado distrito. Esse era o publicano em seu sentido estrito. Depois disso, os publicanos recebiam o direito de cobrar os impostos e, evidentemente, cobravam taxas inflacionadas. Muitas vezes, cobravam um valor muito maior do que o devido, já que não havia um preço fixo do quanto poderiam cobrar.
“(...).
“Já a segunda classe de publicanos era de trabalhadores contratados pelos primeiros, normalmente judeus e não tão ricos quanto aqueles. Eram esses que faziam as cobranças de fato das taxas e dos impostos. Sentavam-se em suas coletorias e eram acompanhados de soldados romanos. Essa segunda classe de publicanos era ainda mais odiada do que a primeira, pois era formada de judeus aliados a romanos, e por isso eram considerados tanto ladrões quanto traidores do seu povo”.[2]
 
Assim, um grupo lutava pela independência dos judeus; o outro tirava o próprio sustento da dominação estrangeira sobre seu povo. Um grupo odiava os romanos; o outro alimentava as estruturas de opressão. Os zelotes estavam dispostos a derramar seu sangue por Israel; os publicanos dedicavam-se a derramar nos cofres de César o produto do suor dos judeus. Os zelotes eram fiéis; os publicanos, traidores.
 
Eram posições políticas não só diferentes, mas antagônicas. Certamente, não se sentavam à mesma mesa, não se aparentavam e não se associavam em nenhum empreendimento.
 
Mas eis que aparece Jesus e sua mensagem. Logo no início do seu ministério, ele forma um grupo de doze seguidores permanentes, denominados apóstolos. Dois deles merecem destaque.
 
Levi, também conhecido por Mateus, era publicano e trabalhava em Cafarnaum, cidade onde Jesus baseava seu ministério na Galileia. Quando Mateus foi avistado por Cristo e chamado para segui-lo, não estava entre as multidões que rodeavam o Nazareno. Estava afastado do povo, “sentado onde se coletavam impostos” (Mateus 9.9, Nova Versão Transformadora).
 
O segundo é Simão. Nas três listas dos apóstolos encontradas nos evangelhos sinóticos, o penúltimo a ser mencionado é sempre “Simão, chamado Zelote” (Lucas 6.15, Nova Almeida Atualizada).
 
Jesus uniu um agente da opressão sofrida pelos judeus e um militante da resistência, que odiava os romanos e seus aliados. Fez deles novos homens ao apresentar-lhes algo muito maior do que aquilo que até então os identificavam social e politicamente.
 
Mateus deixou sua questionável fonte de renda, conforto material e prestígio junto aos romanos. Simão deu as costas para a luta armada e seu exacerbado sectarismo político, religioso e étnico, reorientando seu zelo para lutar por outro tipo de causa.
 
Ambos deveriam abandonar eventuais suspeitas mútuas e viver em harmonia, trabalhando por um só objetivo e fazendo parte de uma comunidade totalmente nova, em que origem étnica, sexo, posição social ou condição econômica se diluiriam numa nova identidade construída sobre outras bases.
 
Por ocasião da escolha de um nome para substituir Judas Iscariotes no colégio apostólico, diz o relato bíblico que todos os discípulos, reunidos, “perseveravam unânimes em oração” (Atos 1.14, Nova Almeida Atualizada). Ali estavam Mateus e Simão, ligados por um propósito mais elevado, em contraste com o que valorizavam até bem pouco tempo atrás. Uma profunda transformação ocorreu no coração daqueles dois homens. Nasceram de novo como irmãos. Agora, dedicavam-se juntos a um reino que “não é deste mundo” (João 18.36) por meio de serviço abnegado, sacrifício, renúncia e, finalmente, martírio, movidos pelo amor ao Mestre ressuscitado e pela esperança de sua volta.
 
Não foi por acaso que Jesus incluiu um publicano e um zelote em seu grupo de seguidores mais próximos. Foi mais um instrumento para deixar suficientemente clara a natureza do seu reino e a forma como seus súditos deveriam viver.
 
Hoje, em que o Ocidente assiste a uma disputa cada vez mais acirrada entre ideologias e visões de mundo ocupadas em conquistar e dominar o poder político, a educação e a cultura, não é difícil entender o porquê de o ódio e o ressentimento terem tomado conta do coração de milhões.
 
O cristão, chamado para ser sal e luz neste mundo confuso, deve permanecer vigilante para não se enredar em situações que desviem seu olhar daquilo que é mais valioso: o amor a Deus e ao próximo.
 
O envolvimento do cristão com a política, sua identificação com essa ou aquela forma de pensar os mais variados temas de ordem econômica, social ou ambiental – nada disso deve levá-lo a negar o evangelho, cujos valores são superiores a qualquer ideologia que já tenha sido ou ainda possa ser inventada.
 
É à luz do evangelho que o cristão deve trabalhar para reduzir o sofrimento e as injustiças, julgar quem merece seu voto e participar na arena política, sabendo que nenhum partido ou ideologia reflete completamente a mensagem de Jesus.
 
Em face de sua “dupla cidadania” e da realidade da falibilidade humana e, logo, da imperfeição de ideias, instituições e estruturas políticas e econômicas, o cristão maduro é menos suscetível a cair no engodo de utopias e no apego idólatra a líderes, sistemas e partidos.
 
Ele compreende que seu vínculo com o evangelho é mais importante do que qualquer outro, constituindo um antídoto contra o veneno do extremismo que, como se vê hoje, fragiliza amizades, azeda relações entre familiares, provoca suspeitas e intrigas entre colegas de trabalho e sufoca a tolerância.
 
Esse equilíbrio do cristão, do cristão conscientemente submisso à palavra de Cristo, não lhe despe da capacidade de agir com firmeza para promover o bem e denunciar e combater o mal. Ele nunca será um sujeito apagado ou neutro, pois, repita-se, seu dever é ser luz do mundo e sal da terra. Mas sua forma de pensar, seu discurso e sua atuação não se rebaixarão ao nível da destrutiva polarização política e ideológica que, segundo muitos, chega a ser uma ameaça à democracia.





*João Alfredo Beltrão Filho -  é graduado em Bacharelado em Direito pela Associação de Ensino Superior de Olinda (1999) e mestrado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010). Atualmente é professor assistente da Associação Caruaruense de Ensino Superior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Processual Civil.  Coordenador do Fórum Regional de Liberdade Religiosa para a Associação Pernambucana Central da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Forlir-APeC).

Um comentário:

Unknown disse...

Interessante a estrategica de Cristo, e também de fazer entender ao longo da história a homens atuais